“Sonho de uma Flauta” Hermann Hesse (Conto)

“Sonho de uma Flauta” é um conto de Hermann Hesse. No Brasil, ele foi publicado no livro “Sonho de uma Flauta e outros contos”. O título do livro em alemão é “Märchen”, que significa “Conto de Fadas”, e ele foi publicado pela primeira vez em 1919.

zhiOmn Ormando
Ormando zhiOmn
10 min readSep 14, 2019

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Hermann Hesse (fotomontagem por zhi-omn)

— Toma — disse meu pai, e entregou-me uma pequena flauta de osso — leva isso e não esqueças teu velho pai, quando alegrares com tua música as pessoas nas terras distantes. Já é tempo de, agora, veres o mundo e aprenderes alguma coisa. Mandei fazer a flauta para ti, porque não sabes mesmo nenhum outro ofício e só gostas de cantar. Mas pensa também em só tocar sempre canções bonitas e agradáveis, senão seria pena pelo dom que Deus te concedeu.

Meu querido pai entendia pouco de música, era um sábio; pensava que eu tinha apenas de soprar a linda flautinha e tudo estaria bem. Eu não queria decepcionar -lhe, por isso agradeci, botei a flauta no bolso e me despedi.

Nosso vale me era conhecido até o grande moinho; depois então começava o mundo, e ele me agradou bastante. Uma abelha cansada do vôo pousou na minha manga, e eu a levei comigo, a fim de que no meu primeiro descanso tivesse um mensageiro para mandar de volta, como um cumprimento à minha terra.

Bosques e prados acompanhavam meu caminho, e o rio corria junto, vigorosamente; eu vi. O mundo diferia pouco da minha terra. As árvores e flores, as espigas de trigo e as moitas de avelã falavam comigo, cantei com elas suas canções e elas me compreendiam, exatamente como lá em casa; com isso minha abelha também despertou, subiu devagar até meus ombros, voou e tornou a cruzar duas vezes comigo, com seu zumbido profundo e doce, e então voltou para a minha terra.

Aí apareceu diante do bosque uma mocinha, que carregava uma cesta no braço e um largo e sombrio chapéu de palha na cabeça loura.

— Bom dia — disse-lhe eu — aonde vais?

— Devo levar a comida aos ceifeiros — disse ela, e caminhou ao meu lado.

— E para onde queres ir ainda hoje?

— Vou para o mundo, meu pai me mandou. Ele acha que devo tocar a flauta para as pessoas, mas isso ainda não sei direito, preciso primeiro aprender.

— Bem, bem. E que sabes então direito? Alguma coisa é preciso saber.

— Nada de especial. Sei cantar canções.

— Que canções?

— Canções de todo tipo, sabes, para a manhã e para a tarde e para todas as árvores e bichos e flores. Agora, por exemplo, eu poderia cantar uma bonita canção de uma mocinha que vem saindo do bosque e traz comida para os ceifeiros.

— Podes fazer isso? Então canta um pouco!

— Sim, mas como te chamas mesmo?

— Brigite.

Então cantei a canção da linda Brigite com o chapéu de palha, o que ela traz na cesta, e como as flores olham para ela, e a trepadeira azul da grade do jardim sente saudades dela, e tudo o que se podia dizer. Ela prestou atenção seriamente e disse que estava bom. E quando lhe contei que estava com fome, ela levantou a tampa de sua cesta e apanhou para mim um pedaço de pão. Como mordi um pedaço e continuei firmemente a andar, ela disse:

— Não se deve comer andando. Uma coisa depois da outra.

— Nos sentamos na grama e eu comi meu pão e ela cruzou as mãos morenas em volta da perna e ficou me olhando.

— Queres cantar ainda alguma coisa para mim? — perguntou então, quando terminei.

— Quero sim. Que deve ser?

— Sobre uma moça que está triste porque o amado partiu.

— Não, isso não posso. Não sei como é isso, e a gente também não deve ficar tão triste. Eu só devo cantar canções gentis e alegres, disse meu pai. Vou cantar para ti sobre o cuco ou a borboleta.

— E do amor não sabes nada? — perguntou ela, então.

— Do amor? Ora claro, isso é o mais bonito de tudo.

Imediatamente comecei a cantar sobre o raio de sol que ama as papoulas vermelhas e como ele brinca com elas e fica cheio de alegria. E sobre a fêmea do tentilhão, quando espera por ele e quando ele vem, ela voa para longe e parece amedrontada. E continuei a cantar sobre a menina dos olhos castanhos e sobre o rapaz que chega, canta e por isso recebe um pão de presente; mas agora ele não quer mais pão, ele quer um beijo da donzela e quer olhar os seus olhos castanhos, e continua a cantar tanto tempo e não termina, até que ela começa a rir e lhe fecha a boca com seus lábios.

Aí Brigite debruçou-se e fechou-me a boca com os lábios e fechou os olhos e tornou a abri-los e eu olhei as estrelas castanho-douradas bem perto, eu próprio estava refletido ali dentro e um par de brancas flores do prado também.

— O mundo é muito bonito — disse eu — meu pai tinha razão. Mas agora quero te ajudar a carregar isso para que cheguemos até tua gente.

Tomei-lhe a cesta e continuamos a andar, seu passo combinava com o meu e sua alegria com a minha, e o bosque suave e fresco falava da montanha em volta; eu nunca havia caminhado com um prazer tão grande. Durante longo tempo cantei alegremente, até que tive de parar de tanta satisfação; eram coisas demais que rumorejavam c contavam-se sobre o vale e a montanha e a grama e a folhagem e o rio e a floresta.

Aí pensei: se pudesse compreender e cantar ao mesmo tempo essas mil canções do mundo, das gramas e flores e gente e nuvens e tudo, da floresta velha e do pinheiral e também de todos os bichos, e além disso ainda canções dos mares longínquos e montanhas, e as das estrelas e luas, e se tudo isso pudesse ressoar e cantar em mim ao mesmo tempo, então eu seria o querido Deus, e cada nova canção deveria ficar no céu como uma estrela.

Mas enquanto eu assim pensava, e estava silencioso e maravilhado, porque aquilo antes nunca me ocorrera, Brigite parou e segurou a alça da cesta.

— Agora devo ir lá em cima — disse ela — lá no campo está nossa gente. E tu, para onde vais? Vens comigo?

— Não, ir contigo não posso. Preciso ir pelo mundo. Obrigado pelo pão, Brigite, e pelo beijo; vou pensar em ti.

Ela segurou a cesta de comida, e sobre a cesta seus olhos novamente se inclinaram para mim em sombras castanhas, e seus lábios prenderam-se aos meus e seu beijo foi tão bom e carinhoso, que quase fiquei triste de tanto prazer. Então gritei rápido:

— Vai-com-Deus — e marchei apressadamente pela estrada acima.

A moça subiu devagar a montanha, e sob as folhas de faia penduradas na orla do bosque, parou e olhou na minha direção e quando lhe acenei com o chapéu, ela tornou a balançar a cabeça e desapareceu silenciosamente, como uma miragem, para dentro da sombra do bosque.

Eu, porém, continuei tranquilamente meu caminho, e estava imerso em meus pensamentos, quando a estrada dobrou numa curva.

Lá havia um moinho e, perto, um barco na água; dentro estava sentado um homem sozinho e parecia apenas esperar por mim, pois quando tirei o chapéu e entrei no barco, este, em seguida, começou a andar e deslizou rio abaixo. Eu estava sentado no meio do barco, e o homem atrás, no leme, e quando lhe perguntei para onde íamos, ele levantou os olhos cinzentos e encarou-me com um olhar velado.

— Para onde quiseres — disse, com uma voz abafada. — Rio abaixo e para o mar, ou para as grandes cidades, podes escolher. Tudo me pertence.

— Tudo te pertence? Então és o rei?

— Talvez — disse ele. — E tu és um poeta, parece-me? Então canta-me uma canção de viagem!

Fiz um esforço, estava com medo do homem grisalho e sério, e nosso barco deslizava rápido e silencioso pelo rio. Cantei sobre o rio, que carrega o barco e reflete o sol e rumoreja mais forte nas margens dos rochedos e completa alegremente seu passeio.

O rosto do homem continuou impassível, e quando prestei atenção, ele balançava a cabeça como um sonhador. Então, para meu espanto, ele próprio começou a cantar, e também cantava sobre o rio, e sobre a viagem do rio através dos vales, e sua canção era mais bela e poderosa que a minha, mas tudo soava diferente.

O rio, tal como ele o cantava, vinha como um destruidor vacilante pela montanha abaixo, escuro e selvagem; furioso, ele se sentia dominado pelos moinhos, coberto pelas pontes, detestava cada navio que precisava carregar, e em suas ondas e nas longas e verdes plantas aquáticas, rindo balançava os corpos brancos dos afogados.

Isso tudo não me agradou, e entretanto era tão belo e cheio de um acento invisível, que fiquei completamente desorientado e angustiado e me calei. Se era certo o que esse velho, sensível e inteligente cantor, cantou com sua voz velada, então todas as minhas cantigas não passavam de tolices e brincadeiras bobas de criança. Então o mundo, por causa delas, não era bom e luminoso como o coração de Deus, e sim escuro e triste, mau e sombrio, e quando os bosques murmuravam, não era de alegria, e sim de martírio.

Seguimos adiante, e as sombras foram longas, e de cada vez que comecei a cantar, meu canto soava menos claro, e minha voz tornava-se mais baixa, e de cada vez o cantor desconhecido respondia com uma canção que tornava o mundo ainda mais enigmático e penoso, e me tornava ainda mais tímido e triste.

Minh’alma doía e eu me arrependia de não ter ficado na terra, perto das flores ou da linda Brigite, e para sentir-me seguro no crepúsculo que crescia, recomecei a cantar e cantei na luz vermelha da tarde a canção de Brigite e de seu beijo.

Aí o crepúsculo começou, e eu emudeci, e o homem no leme cantou, e ele também cantava sobre o amor e a alegria do amor, sobre olhos castanhos e azuis, sobre lábios vermelhos e úmidos, e era lindo o que ele cantava, cheio de dor, sobre o rio escurecido, mas em sua canção também o amor se tornara sombrio e temível, e um segredo mortal, no qual os homens aflitos e feridos tocavam com seu desejo e sua saudade, e com o qual se martirizavam e se matavam uns aos outros.

Escutei e fiquei tão cansado e aflito, como se já estivesse viajando desde muito tempo e houvesse passado por grande miséria e desgraça. Vinda do estranho, sentia cair sobre mim uma torrente silenciosa e fria de tristeza e receio, a penetrar no meu coração

— Pois bem, a vida não é o que há de mais elevado e mais belo — gritei afinal amargamente — e sim a morte. Então te peço, rei triste, canta-me uma canção da morte!

O homem no leme cantou somente sobre a morte, e cantou melhor do que eu jamais ouvira cantar. Mas a morte também não era o que havia de mais elevado e mais belo, nela também não se encontrava consolo. A morte era vida e a vida era morte, e elas estavam entrelaçadas numa perpétua e furiosa luta de amor, e isso era a última coisa e o sentido do mundo, e dali vinha um clarão, que parecia querer valorizar toda miséria, e de outro lado vinha uma sombra que perturbava toda alegria e beleza e as envolvia na escuridão. Mas para além da escuridão, a alegria ardia mais íntima e bela, e o amor queimava mais profundamente nessa noite.

Escutei e fiquei bem quieto, não tinha mais nenhuma vontade dentro de mim além da vontade do estranho. Seu olhar repousou sobre mim, tranquilo e com uma certa bondade triste, e seus olhos cinzentos estavam cheios da dor e da beleza do mundo. Ele me sorriu, e então achei nele um coração, e pedi na minha dor:

— Ah, vamos voltar! Sinto medo aqui na noite e queria retornar para onde posso encontrar Brigite, ou para a casa de meu pai.

O homem levantou-se e espiou a noite, e sua lanterna iluminou claramente seu rosto magro e firme.

— Para trás não há caminho — disse sério e amável — a gente precisa ir sempre para frente, quando quer penetrar o mundo. E da garota dos olhos castanhos já tiveste o melhor e o mais belo, e quanto mais longe estiveres dela, melhor e mais lindo isso vai-se tornar. Ainda assim, segue sempre para onde quiseres, vou-te ceder meu lugar no leme!

Eu estava triste demais, e, entretanto, vi que ele tinha razão. Cheio de saudade pensei em Brigite e na minha terra e em tudo que me fora próximo e luminoso e que me pertencera, e que eu agora havia perdido. Mas queria tomar o lugar do desconhecido e dirigir o leme. Assim devia ser.

Por isso levantei-me em silêncio e fui andando pelo barco até o lugar do leme, e o homem veio em silêncio ao meu encontro e quando já estávamos perto um do outro, olhou-me firmemente no rosto e entregou-me sua lanterna.

Entretanto, quando me sentei ao leme com a lanterna do meu lado, estava sozinho no barco; percebi isso com profundo horror, o homem desaparecera, e, contudo, eu não estava amedrontado, já pressentira isso. Pareceu-me que o lindo dia da caminhada e Brigite e meu pai e minha terra tinham sido apenas um sonho, e que eu era velho e aflito, e que desde sempre e sempre viajava sobre esse rio noturno.

Compreendi que não devia chamar pelo homem e a percepção da verdade atingiu-me como a geada.

Para certificar-me do que imaginava, debrucei-me sobre a água e ergui a lanterna, e do escuro espelho de água um rosto duro e sério me olhou com olhos cinzentos, um rosto velho, sábio e vi que aquele era eu.

E como nenhum caminho voltava atrás, continuei seguindo sobre a água escura dentro da noite.

— Hermann Hesse, no livro “Sonho de uma Flauta e outros Contos”

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Publicado originalmente no livro “Sonho de uma Fauta e outros Contos” de Hermann Hesse.

Texto copiado de sbu.paginas.ufsc.br/files/2013/04/Hermann-conto1.pdf.

Leitura do conto:

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