ÂNIMO

Thiago Barbalho
ORNITORRINCO site
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5 min readSep 1, 2016

Amigo,

Eu ouvi você dizer que não tem mais jeito, que o país nunca vai melhorar. Eu sei que a sensação é de que vivemos um retrocesso, mas não caia na cilada de achar que os dias de hoje são exatamente iguais aos piores dias vividos no país.

Eu sei que você sabe olhar bem as coisas, e sabe que há conquistas. Sabe que a voz dominadora da grande mídia anda abalada pela polifonia da internet. Eu sei que você percebe a vitória incômoda alcançada pelos que lutam. Não despreze o que eles conseguiram. Assuma e honre a luta. Mesmo que algo disso tenha se desfeito por uma corrente de derrotas, não se prejudique dizendo que está tudo igual. Não caia na nostalgia. Não cave o buraco da tristeza você mesmo — ele já é bastante fundo. Toda a gente que lutou até aqui, gente que se apegou ao poder do conhecimento e da educação para agir e transformar, para trucidar a censura e implodir a desigualdade, nos serviu, no mínimo, de exemplo do quanto é preciso gritar. Tanta gente sofreu, aguentou, batalhou. Teve até gente que morreu, e você sabe que a sua própria vida conta com o auxílio da resistência heroica dessa gente. No mínimo, isso trouxe a consciência da luta, a consciência do seu lugar, a urgência de ter uma voz.

Você sabe que a realidade de hoje pode ser próxima daquela dos piores tempos, mas nenhum tempo pode ser considerado igual a outro. Por lei física, a realidade é sempre outra, nova. Mesmo que gente apegada ao passado a puxe para trás, ela ainda se difere, ainda é inédita, e por ser outra, posterior, é mais complexa, mas vem trazendo também o que de bom conseguiu ficar aqui e está aqui agora. E, por ser agora, essa realidade tem questões cujas respostas e resoluções temos que batalhar por achar, mas não se esqueça nunca de que você convive com algumas conquistas. Honre o lugar e o tempo que você ocupa no mundo.

Os nossos amigos são livres e corajosos, persistentes e fortes. E embora haja quem diga que nem o exercício dessa coragem será garantido por muito tempo, com o que você pode até concordar, você sabe bem que ainda somos audaciosos à altura da hipocrisia de quem não nos tolera, então podemos sim celebrar o fato de que nós e nossos amigos estamos dando o nosso melhor, estamos enfrentando a mediocridade e o conservadorismo com contestação, maquiagens libertárias, opiniões. Não se esqueça de que as pessoas que cresceram afastadas da chance de ter uma voz, feito eu e você, hoje podem ter voz e falar desde o seu próprio ponto, com seus próprios valores e urgências. Aproveite isso, porque assim você se fortalece. Porque, ao aproveitar isso, você reconhece que toda conquista realiza quem sabe usufrui-la. O nosso ativismo tem que ser a persistência do gosto pela vida. É isso que incomoda quem quer nos dominar.

Aproveite a legitimidade da busca por prazer. Isso vai te ajudar a não desanimar. Coloque o corpo sobre tudo que é bom e fortaleça o salto à frente, trazendo até a zona cinzenta de agora a disposição para encontrar seus comuns e se fortalecer na busca por novos caminhos. Acredite no prazer de crescer e fazer crescer quem convive com você. Defenda a tolerância e o convívio não necessariamente no discurso, mas no carinho, no respeito. Sempre que um conhecido religioso puritano aparecer, fale do perdão e do amor — evite acusá-lo de contradição por não amar como ele mesmo prega, mas relembre-o de que o amor e o respeito, a verdadeira capacidade de se olhar como igual, impedem qualquer um de impor com censura a sua própria moral. Diga aos doutrinadores que cada um pode viver como quer, que isso significa amor total. Lembre-lhes de quantos livros diversos são considerados sagrados e que todos podem servir de código moral individual se a gente respeita o código moral dos outros.

Quando conversar com ateus, homens e mulheres dotados da convicção de que não existe um deus a nos olhar, louve o que para eles pode ser louvado sem precisar de imposições transcendentais: fale do conforto dos afetos, da alegria do carinho, fale da beleza no mundo, fale do gosto da comida, fale do conforto do descanso. Traga de dentro de todos o senso de júbilo.

Quando se sentir desesperado, tomado por agonias de tragédia ou dificuldade, faça chá de capim-cidreira e tome esse chá para permitir que a calma fique presente no seu corpo.

Lembre-se da inconstância do tempo e da história. Quando alguém disser que está tudo sem saída, que agora não tem mais jeito, responda que não podemos exigir da história uma linearidade e uma vitória constantes, diga que há fases melhores e fases piores. Fale da paciência, da luta, do descanso, da força, fale da impossibilidade cósmica de retrocesso total, fale do valor de se cercar do que te contenta.

Mas se lembre de que essa força passa pela capacidade de não exigir que todo mundo concorde com você. Se alguém não quiser concordar com aquilo que a você parece óbvio e urgente, afaste-se um pouco para não se esgotar. Dê uma volta. Tome um café. Veja o mar. Olhe a cidade do alto à noite. Ande no parque. Converse com um amigo. Você precisará sempre de fôlego. Fôlego é fundamental. Não tenha medo de se respeitar nem de perder. Principalmente não tenha medo de continuar vivo.

Aceite a complexa geometria das sensações e dos fatos. Aceite a impossibilidade de ganhar todas as batalhas. Aceite que há tempos difíceis, lentos, duros. A gente acha um jeito de absorver o impacto e reagir. Mas tenha ao alcance suas zonas de descanso. Encontre lugares e acontecimentos que funcionem como lembretes da alegria e da calma que ganhamos quando estamos abertos à alegria e à calma. E não se esqueça nunca da passagem do tempo. Não se esqueça nunca de que, quando digerirmos o que nesse instante desce intragável goela abaixo e o nosso corpo e a nossa mente reagir, a gente vai estar num lugar à frente, com a consciência de que fizemos o possível para totalizar o amor no mundo. Se o que nos espera é bom ou ruim, fácil ou difícil, isso já é outra questão — e esteja pronto para ambos. Mas não se esqueça de que, seja como for, passar por isso já é um jeito de amadurecer, de tomar consciência e de experimentar o que cada tempo nos dá.

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Thiago Barbalho
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“Um homem bom“ (Iluminuras, 2017), “Thiago Barbalho vai para o fundo do poço” (Edith, 2012) e “Doritos” (Vira-Lata, 2013). thiagobarbalho.com