Quatro livros que não estão nas livrarias

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
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5 min readMar 26, 2016

Minha incursão no mundo das editoras independentes começou com um mojito. Ou, mais precisamente, com um potinho de vidro que fazia as vezes de copo, e que tinha amarrada por uma fita uma etiqueta com meu nome carimbado. Já não sei de quem foi a ideia original, mas sei que coisas carimbadas viraram mania entre meu grupo de amigos no trabalho, e constantemente eu deparava com envelopes e bilhetinhos escritos em caligrafia caprichada e estampados por carimbos personalizados (alguns dos quais feitos pelas mãos e goivas de Manon) em cima do teclado do computador. Era um tempo que usávamos o horário de almoço para excursões na SAARA, no Centro do Rio, à procura de almofadas de tintas coloridas, furadores que fizessem buracos em formatos diversos, fitas adesivas estampadas e demais gadgets que pudessem promover um simples lembrete num post-it a objeto de coleção. Era quase uma batalha do passinho de papeis, e toda essa efusão deu origem, de forma mais ou menos direta, a uma das inúmeras editoras independentes e/ou artesanais que criaram um mercado particular de impressos, zines, pôsteres e livros em geral.

À “carimbo mania” seguiu-se a invasão de elefantes pela minha casa e a de numerosos amigos, porque depois de pendurá-los na minha parede, comprei mais vários pôsteres para presentear pessoas queridas, mesmo sem data comemorativa à vista. A brincadeira da infância que afirma que “um elefante incomoda muita gente” — e dois, e três, e quatro e quantos, “incomodam, incomodam, incomodam muito mais” — virou também livrinho, cujas páginas vão ficando cada vez mais povoadas com os animais, criações de Manon Bourgeade e Pedro Lima, que juntos fundaram a Pipoca Press. E, claro, perderam as contas de quantos elefantes estamparam nas páginas e pôsteres (e eu perdi as contas de quantas casas ajudei a decorar). Os bilhetinhos e identificações de drinks, afinal, deram cria.

Desde então, a dupla me apresentou a diversas outras editoras que, assim como eles, abrem caminhos férteis para os amantes dos impressos, editando trabalhos em papeis de gramaturas e texturas diversos, encadernações artesanais, tiragens limitadas e acabamentos que vão muito além do fanzine, tradicionalmente identificado a essas iniciativas. São muitas feiras, eventos, oficinas e alguns nomes inusitados (como a Xereca, zine feminista, ou a Contra, que possui seu próprio manifesto e uma Escola Livre e itinerante**), além de ocupações em bancas de jornal.

Como fui conquistada por esse universo a doses de hortelã e amizade, natural que a minha pequena seleção de independentes favoritos siga uma lógica parecida — ou quase. Deixo aqui minhas sugestões daqueles achados que você pode estocar em casa pro caso de uma distribuição emergencial.

1. Jardim do Seu Neca. Inventário botânico afetivo, de Ana Rocha (Polvilho edições, 2014)

Definido pela própria autora como “uma espécie de herbário”, o Jardim do Seu Neca é um livro ilustrado com capa de tecido e encadernação artesanal publicado pela Polvilho. As ilustrações em sépia vêm acompanhadas de frases do Seu Neca, o dono do jardim em questão, que fica em Mangue Seco, na Bahia. Sua fala simples transborda de ternura pelas flores e plantas. A do pé de jaca sempre corta meu coração: “Tô tentando. Mas coitadinho, não dá não.” São apenas 200 exemplares numerados, um pequeno tesouro de escuta, e que dá vontade de sair comprando terras que, com sorte, atrairão um jardineiro tão delicado quanto o protagonista do livrinho.

2. Pedro sem vesícula, de Pedro Lima (Pipoca Press, 2015)

Em dezembro de 2014, Pedro teve o veredicto sobre seu mal-estar: sua vesícula — e consequentemente as férias no Recife — estava(m) condenada(s). Pedro e Manon, a dupla já citada por trás da Pipoca Press (homenagem ao cachorro do Pedro), transformaram a dor num livro que conta essa trajetória médica. As explicações científicas convivem com outras intervenções gráficas, dos exames de ultrassom a fotos do baú de família e polaroides hospitalares. Uma leitora também sem vesícula definiu o livrinho como “uma tiração de onda”, afinal não é qualquer um que tem a sensibilidade de transformar uma cirurgia num livro lindamente impresso e de humor divino. Mas fique tranquilo, até nós que possuímos todos os órgãos no lugar podemos nos relacionar e nos deliciar com o retalhamento alheio.

3. Dinâmica de bruto, de Bruno Maron (Maria Nanquim, 2015)

Boa parte dos personagens de Bruno Maron têm os rostos do Cara a cara, jogo que marcou a infância de toda uma geração. Não é a única característica insólita dos quadrinhos. Neles, Cézanne é um precursor do instagram, a arte é um “expectorante dos afetos” e uma entrevista com Henrique (aquele loirinho de chapéu azul do jogo) revela que ele não se deixa seduzir pelo poder, que “o controle da ejaculação precoce já é suficiente”. Todo cinismo é permitido, toda filosofia é sacaneada, toda salada de quinoa é avacalhada. Maron ainda escreve dedicatórias igualmente afiadas (“Muito obrigado por fortalecer a produção de niilismo em território nacional”) e te faz gargalhar por cerca de 160 páginas.

4. Coisas ainda mais banais que o amor, de Ana Mohallem e Dindi Coelho (Pingado Prés, 2015)

Quando o Gabriel Pardal e o Mariano Marovatto me convidaram para integrar o ORNITORRINCO, ambos disseram que curtiam o fato de eu não escrever sobre o amor (há controvérsias). A dupla Ana e Dindi, por sua vez, escreveram um livro (quase) inteiro sobre, e ele é maravilhoso porque basicamente elas o travestem de sorvete napolitano, água com gás, mousse de maracujá, animais. Como se não bastassem os fragmentos que provocam gargalhadas sonoras (o que mais gosto é esse: “uma loucura pela tríade do instantâneo: amor, ódio e miojo”, mas a toda hora — e a cada página — mudo de ideia), o livro tem um projeto gráfico muito caprichado. O craft recortado que separa as seções faz lembrar os arquivos de pastas suspensas, e portanto faz crer que amor é dessas coisas preciosas que convém mesmo guardar em local seco, porque não é pra qualquer um.

* Todas as imagens foram tiradas dos sites das editoras.

** Thereza Bettinardi me corrige em um comentário via Facebook: “ só uma correção: a A Escola Livre não é uma iniciativa da Contra. Um dos seus co-fundadores (da escola) é o editor da Contra, mas não está no mesmo ‘guarda-chuva’.”

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).