O MONÓLOGO DOS OPRIMIDOS

É evidente que as pessoas não falam do mesmo lugar social, que os grupos oprimidos devem ter participação ativa e protagonismo, no entanto, não é saudável trocar um monólogo pelo outro, mas sim defender a variedade de vozes

Franco Fanti
ORNITORRINCO site
5 min readFeb 16, 2017

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É evidente que as pessoas não falam do mesmo lugar social e não possuem as mesmas relações com as estruturas de opressão.

Muitas situações polêmicas que envolvem minorias me fizeram refletir muito recentemente. Em especial teve diversos textos (antigos e mais recentes) sobre a questão das marchinhas de carnaval no Rio, e a última, e que mais me impactou, foi quando o li este texto através do qual soube da história da jovem com câncer que disse que foi acusada de apropriação cultural ao usar um turbante. Todas estas situações permeiam uma questão que vi ser usada diversas vezes em debates sobre estas polêmicas: lugar de fala.

Lugar de fala é uma expressão que aparece recorrentemente em temas que envolvem militantes de movimentos feministas, negros, LGBTQia+ e em discussões na internet, como contraponto à falta de voz destas minorias sociais em espaços de debate público e é utilizada por grupos oprimidos que historicamente sempre tiveram menos voz. Lugar de fala pode ser entendido como a busca pelo fim da mediação: um estudo sobre como as opressões estruturais impedem que indivíduos de certos grupos tenham direito a fala, à humanidade, a pessoa que sofre preconceito fala por si, como protagonista da própria luta.

Apesar do conceito em sua essência ser extremamente positivo, o alastramento, a popularização e o uso distorcido do lugar de fala gera muitos efeitos paradoxais e negativos como o print abaixo, de uma conta (que parecia real, sofreu diversos ataques e hoje fui ver está desativada) de alguém que parecia ser uma militante feminista negra criticando a menina com câncer que usou um turbante.

Um primeiro efeito paradoxal do uso distorcido do conceito de lugar de fala é reforçar os argumentos “ad hominem”.

Há algum tempo atrás fui atacado quando argumentei em um texto sobre uma posição de militância feminista que achei incoerente e equivocada. Diversas mulheres desqualificaram meus argumentos, não pelo teor destes, mas pelo simples fato de serem argumentos de um homem. Em paralelo, é como um extrema direita defensor do Trump desqualificar uma argumentação contrária aos decretos anti-imigratórios do Presidente porque fulano não é estadunidense. E um fator agravante é que estes argumentum ad hominen usados contra mim neste contexto são reproduzidos não só na pauta do feminismo, mas num debate entre uma feminista negra desqualificando uma feminista branca, um transexual atacando um homossexual. Como bem disse Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, se um movimento social desqualifica argumentos que não são enunciados pelos próprios oprimidos, simplesmente por não serem enunciados por oprimidos e não pelo seu teor, ele resgata e de certa forma legitima uma modalidade de argumento ad hominem.

Este tiroteio ideológico desqualificatório em diferentes círculos de militâncias é usado tantas vezes para blindar a crença de que lugar de fala é uma forma de superioridade gnosiológica das pessoas pertencentes a um determinado grupo oprimido, como se estes tivessem uma espécie de acesso privilegiado à verdade, pela sua identidade ou pertencimento a estes grupos. O conhecimento pragmático, o contato direto com uma realidade, são formas muito válidas de conhecimento e reflexão sobre ela, mas não são as únicas e nem são sempre hierarquicamente superiores às outras. Reduzir a teoria de lugar de fala somente às vivências seria um grande erro, pois O fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo, lugar de fala não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar.

“Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo." Lugar de Fala (Feminismos Plurais) de Djamila Ribeiro.

É evidente que as pessoas não falam do mesmo lugar social e não possuem as mesmas relações com as estruturas de opressão. É certo que os grupos oprimidos devem ter participação ativa e protagonismo nas formas de falar, saber e poder sobre sua própria condição. No entanto, não é saudável se passarmos de um monólogo ditatorial do macho alfa branco cis para um monólogo dos oprimidos, onde só pode falar quem pertence aos grupos e pior, estabelecendo uma ordem hierárquica entre essas vozes. A supressão de debates só gera ressentimento e empobrecimento da argumentação, é preciso ter cuidado, a virtude está no meio.

Os abusos e distorções deste conceito de lugar de fala têm levado ao que definiu Renan Quinalha, advogado ativista de direitos humanos, doutorando de Relações Internacionais e colunista da revista Cult: “uma lógica problemática de privatização das pautas em uma armadilha identitária”.

Há uma tendência de abuso do uso do conceito de lugar de fala por pessoas pertencentes a grupos oprimidos como os únicos legítimos e aptos a discutir problemas que afetam todos nós. O resultado é que este posicionamento que tem forte viés anti-democrático, onipotente e onisciente sobre estas pautas, acaba alienando e gerando resistência ainda maior em alguns grupos privilegiados, fazendo que mesmo em discursos legítimos, pertinentes e coerentes, só se veja ”mimimi”. Não se trata de culpabilizar os oprimidos, mas é fato que posicionamentos de hierarquização de opressões, são prato cheio para extremismo de direita e vitórias de Trumps.

No sentido de construção cultural e histórica, a identidade é um fator fundamental de autoconsciência, de pertencimento, de auto-estima, de solidariedade de grupo e crucial para a ação política dos oprimidos. Precisamos entender nossa branquitude masculina como uma espécie de metáfora de poder, contudo, não é nada saudável o que tem se transformado em uma espécie de enfatização desta condição, ou por outro lado um uso cada vez mais frequente da identidade de minoria como objeto de fetiche. Sinto que paralelamente precisamos começar a pensar identidade menos como propriedade inalienável e imutável, mas sim como um rótulo com data de validade, para irmos além da lógica de segregação.

É importante ressaltar que não pretendo confundir representatividade com lugar de falar. Uma travesti preta, por exemplo, não pode ser representada por um homem branco cis, mas do lugar que ele ocupa é perfeitamente possível que ele teorize sobre questões relacionadas a realidade de pessoas trans e travestis eticamente, conscientemente, buscando igualdade e justiça.

Não se pode negar a existência do lugar de fala, entretanto, novamente citando Quinalha, “deve-se frisar que lugares de fala é expressão que se pronuncia sempre no plural”.

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