A estranha mania (da minha analista) de ter fé na vida

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
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5 min readSep 13, 2017
Stuart Hample

“Pedi ‘Smells like teen spirit’ para o DJ”, disse o Pedro. Minha gargalhada foi instantânea: as pessoas dançavam axé na pista. O DJ teria que fazer um longo percurso para chegar ao Nirvana, “ou um corte abrupto”, o Pedro rebateu. Talvez eu tenha dado tapinhas no ombro dele, e caminhei em direção ao banheiro. Uma ou duas pessoas na fila, o tempo de uma música acabar e eu ouvir as guitarras de Kurt Cobain. Aproveitei a única ocasião em que correr se justifica e cheguei na pista a tempo de rir e tomar fôlego pra pular e cantar em coro de abraços o primeiro refrão.

Pedro é um otimista. Minha analista também. Do tipo incorrigível. Toda semana eu chego ali, no mesmo consultório em Botafogo, para chorar minhas pitangas e convencê-la de que tudo vai mal, tudo. Uma vez por mês eu digo pra ela que vou deixá-la, que já sei o que ela vai dizer para cada derrota que eu narrar, e que talvez eu precise de respostas de outra ordem, algo sobrenatural, espiritual ou astrológico. Algo que me confirme que talvez seja só um exu encostado em mim, e não os mercados editorial, hétero e imobiliário brasileiros. Ela dá uma gargalhada instantânea, sabendo que vou voltar na semana seguinte, e elabora argumentos que nunca consigo desarmar, porque a essa altura minha cabeça já está funcionando de outro jeito, um que parece automático e viciado nos padrões que ela tenta descolonizar, e que é uma cópia do que me ocorre quando estou escrevendo — ou me ouvindo contar pra ela histórias que tem muito mais apelo distorcidas pelo meu ar fracassado, e que depois vão parar em um texto ligeiramente engraçado.

Minha analista é capaz de ver ganhos onde alguém só veria desgraça. Para ela, o fato de eu remotamente cogitar me apaixonar outra vez — mesmo que a paixão já venha selada com o carimbo de devolução ao remetente — é mais importante que os cacos que eu teria que catar depois, caso sucumbisse a outra cilada. A ideia da paixão, ela diz, é indício que uma cicatriz fechou, que já baixei a guarda, que já posso começar de novo, que, enfim, a fila anda. É claro que eu não estava falando só de um episódio, que envolvia um sujeito que cantava “eu quero ir embora, eu quero dar o fora, e quero que você venha comigo” olhando pra mim e, eventualmente, passando a mão na minha bunda. Eu me referia a um conjunto de pessoas e eventos anteriores, e ela tentava me dizer que às vezes, não, as histórias não vão se repetir, que às vezes, sim, a vida é só uma festa com gente alucinada. Com isso, ela arruinou os meus planos de passar uma tarde em casa, miserável, procrastinando a falência múltipla de todas as minhas empreitadas atuais. Neste cenário, resolvi nadar. Ocorre que Ricardo, o professor de natação, é um otimista também.

Desde que, há algumas semanas, Roberto e eu chegamos juntos ao clube, Ricardo se acha no direito de me informar a quilometragem do meu amigo na piscina: “Roberto já veio hoje e nadou mil e quinhentos metros.” O que o Ricardo e sua corja de gente com fé na vida não sabe é que nós, seus antagonistas, não temos espírito competitivo. Não tenho marca nenhuma a vencer nas águas cloradas do clube, só espero colocar a coluna no lugar e poder, em breve, voltar pra aula de balé onde sou a pior aluna. Até nisso a analista deve enxergar alguma vantagem: “Veja só, você voltou às aulas de balé depois de tantos anos e reabilitações.” Ela esquece que, justamente, larguei as aulas dois meses depois, porque machuquei, de novo, as costas. Não há nada que escape, o que me faz nadar mil e quinhentos metros meio furiosa, pensando na analista meio Poliana, no Roberto e em nossas conversas sobre nossos livros que não vendem e que não entram na lista de finalistas de nenhum prêmio. Gosto do Roberto. Sinto falta dele na raia ao lado, me sinto compreendida, mesmo de touca e de óculos que esmagam meus cílios e incham ainda mais minhas olheiras, e mesmo que ele poste nas redes sociais uma foto em que apareço nesses trajes ridículos. Ricardo parece mais feliz que eu pelo meu feito do dia. Folgo em saber que alguém além da minha analista se diverte às minhas custas.

Talvez seja uma característica infantil, de querer sempre mais fatias do bolo que já acabou, em detrimento de outras ao alcance, e talvez minha analista finalmente concordasse comigo e me desse uma trégua. Ou pode ser uma questão mais filosófica, uma lição que a yoga não tem conseguido me ensinar. Pode ser que eu queira só que ela abra um espaço mais brando, porque os dias têm sido constantemente uma piscina de adultos treinados para não urinar ali. Desconfio, porém, que o meu processo criativo passe, inevitavelmente, pelo sofá cheio de almofadas da analista, e que só quando tomar coragem de abandoná-la de verdade é que essa fonte vai secar e essa angústia vai passar.

Ao fim da sessão, lembro de uma conversa recente com a Giovana, outra otimista, que me rogou uma praga quando eu disse que queria começar tudo de novo e ser fisioterapeuta: “Você vai se tornar dependente de remédios pra dormir se largar a literatura.” Concluímos, ela escritora e bailarina, eu um protótipo das duas coisas, além de nadadora preguiçosa, que levantar cedo pro abate de uma aula de clássico conforta pela música. Há uma beleza em sofrer ao som de Debussy. A melodia se impõe de um jeito parecido com aquele que é bater o olho em alguém e esquecer, por uns instantes, que você tem hérnia de disco, ou que está em uma piscina de adultos, e que depois vai doer. Logo penso em dois versos da Marilia Garcia que li antes desses instantes aos quais eu já me julgava imune: “O amor é alguém entrando/ na geometria da sua mão.” Se eu der uma outra chance à analista, talvez conclua que ela falava disso, de cortes abruptos que afinal operam como munição para alguma coisa, para um balé que eu imediatamente começo a rascunhar na minha cabeça, ao menor sinal de alguma coisa que entra pelas mãos — mesmo que na verdade essa coisa escorregue, instantaneamente. Como quando o DJ sai dos trilhos e atende um pedido improvável. Ou como quando, sem querer, você dá uma cabeçada na borda da piscina, sem perceber como pode ser fácil chegar do outro lado.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).