A morte anunciada da Cosac Naify
Do catálogo cheio de boa ficção, boa teoria e livros de arte primorosos, tudo o que foi publicado pela editora poderia figurar nas estantes dos que amam livros.
Era uma prática comum no departamento: alguém via o anúncio de descontos da Cosac Naify e corria pelas baias avisando os demais. Aguardávamos o horário em que as vendas se iniciavam, depois aguardávamos os pacotes gordinhos chegarem em casa, depois levávamos os livros pro trabalho pra cheirá-los juntos, depois comentávamos sobre o dia em que chegasse nossa aposentadoria, quando finalmente poderíamos ler aquele tijolo do Dickens, todo o Vila-Matas e os russos. Os Zambra, devorávamos como banquetes.
Creio que todo editor um dia sonhou trabalhar na Cosac, assim como todo leitor um dia xingou a edição de Bartleby deles. Ninguém nunca engoliu aquele “Acho melhor não” em vez do “Prefiro não fazer” de outras traduções, e a brincadeira de ter que cortar as folhas perdeu a graça logo na terceira página. Sem contar que o livro mofava toda semana. Outro alvo de reclamações era uma edição do Henry James, de páginas e tipografias cinzas e prateadas, o que tornava a leitura um suplício. Mas fora esses — ou a eventual dificuldade de se manter um Faulkner inteiramente aberto — os livros da Cosac costumam ser como doces numa vitrine: impecáveis e deliciosos.
Do catálogo cheio de boa ficção, boa teoria e livros de arte primorosos, tudo o que foi publicado pela Cosac poderia figurar nas estantes de nós que amamos livros. Essa semana deparei com um texto que levanta algumas questões sobre ebooks — ao contrário do que a maioria do público leitor em geral pensa, os digitais não são a causa das dificuldades do mercado editorial brasileiro — e sua estagnação em vendas mundo afora. Dentre os argumentos para se tentar mapear os problemas, a diagramação “feia” e monótona era uma delas. O texto faz um paralelo entre música digital e seu consumo e os livros virtuais. É claro que os livros físicos podem eventualmente ser superados, como tantos outros suportes já o foram, mas por enquanto o hábito de leitura ainda está bastante atrelado a um formato e um conforto que os livros de papel oferecem. Isso faz com que a notícia do encerramento das atividades da Cosac pese ainda mais pra quem tem um certo fetiche estético. Se lá em cima eu disse que editores têm essa mania de cheirar livros, imagine que somos capazes de implicar e/ou nos deleitar com uma infinidade de detalhes que nos fariam parecer tarados. Talvez sejamos.
2015 foi um ano ruim para as editoras brasileiras, que sem a venda para os programas de leitura do governo (ou melhor, dos governos, em 3 esferas) viram seus lucros despencarem, e botaram uma porção de nós na fila do FGTS. O anúncio do fim da Cosac se espalhou como antes se fazia o burburinho dos descontos, mas com mais um desânimo e mais um buraco no caminho. Ainda que fossem favas contadas, os milionários à frente do negócio por anos pareceram inabaláveis, quase como mecenas contemporâneos. Conto pelo menos 3 anos comprando livros com até 70% de desconto. A tristeza agora é saber que em breve não os compraremos por preço nenhum. Entre suspiros e mensagens de lamento, ficamos todos nós, sonhadores da terceira idade literária, meio Bartlebys, olhando pra um muro cinzento e sem graça, com aquela música do John Lennon ao fundo: “The dream is over.”
obs. Via Twitter, funcionários da Cosac Naify, e/ou pessoas próximas a eles desmentem a afirmativa de Charles Cosac ao Estadão, de que teria comunicado sua decisão de encerrar as atividades aos seus empregados. Ao que tudo indica, os mesmos receberam a notícia através da matéria no jornal. Tão deprimente quanto o fechamento da editora é essa política sistemática de desrespeito aos funcionários.