Aceno de sobrancelha e abracinho

Um pequeno manual de cumprimentos modernos

Clara Meirelles
ORNITORRINCO site
3 min readFeb 2, 2017

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O aceno de sobrancelha é como virar a cara. Ou fingir que não viu, com mais elegância. Depois de certa idade — ou de certo grau de hipocrisia — é preciso saber usar a sobrancelha, especialmente quando cruzamos com aquele colega de turma de um curso de quê mesmo? Ou com o ex-ex de um amigo, que se chama… não era um nome com T? Você não notaria se aquela pessoa tivesse ido morar no Chuí, se tivesse se tornado um monge ou sido abduzida por ETs. Você não quer parar para falar com a pessoa. E, sinceramente, nem ela quer parar para falar com você. A sobrancelha, esse orgão vital, está lá para te salvar.

Não levante demais as sobrancelhas. Tente não parecer assustado. Não demore demais olhando para o seu interlocutor. Não faça cara de botox, mesmo que tenha colocado. Complemente o cumprimento com um leve sorriso, sem mostrar os dentes. E o mais importante: não fale. Jamais. Se comunicar por palavras é muito arriscado. Qualquer olá verbalizado vai pode estragar completamente o bom aceno de sobrancelha. Ou, vamos logo dar um nome: sobrancelhada.

Uma sobrancelhada pode eventualmente evoluir para a categoria do abracinho. Embora deva ser evitado a todo custo, principalmente no verão, algumas pessoas insistem em cultivar o maldito abracinho. É como um abraço sem beijo prévio, às vezes até sem sorriso, com braços diminuídos, que não envolvem o interlocutor e mal tocam as costas. É tão impessoal quanto um aceno de sobrancelha. É quase um esbarrão proposital que soa como carinho. É um cumprimento muito útil quando duas pessoas não querem se olhar, pois não é preciso encarar o outro: você pode olhar para a lateral e só dar uma leve ombrada. Não aperte demais, não passe afetuosidade, ou você pode colocar tudo a perder. Pior: pode acabar gostando. É muito arriscado. Ou, pior, seu interlocutor pode achar que você gosta dele. Depois dos três segundos regulamentares do abracinho, é permitido sair correndo, não trocar palavras e não fazer perguntas.

Algumas situações se tornam complicadas demais para a sobrancelhada ou o abracinho. Em ambientes fechados ou de convívio forçado, como elevadores, filas, incêndios e retiros espirituais, é realmente preciso interagir. O jeito é falar sem conversar: dizer alguma coisa que seja ao mesmo tempo simpática e não implique em ter assunto, ou você teria que acabar dialogando. Nossos antepassados já deram um jeito nisso e formularam algumas frases para essa fuga: “Quanto tempo! Me liga! Vamos marcar!”

Se por acaso houver resposta, será preciso usar o recurso máximo: o celular. Mantenha-se de cabeça baixa, deslizando o dedo para cima e para baixo no telefone, e com o semblante extremamente sério, mesmo que esteja jogando candy crush. O celular resolve o que o aceno de sobrancelha, o abracinho e o “vamos marcar” não conseguiram. Para tudo há uma técnica. Conversar é muito arriscado.

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