Amiga, vamos fazer uma cortininha?

Clara Meirelles
ORNITORRINCO site
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3 min readMar 17, 2017

É domingo de carnaval em pleno Centro do Rio: tá quente, tá cheio, outras dez mil bexigas estão funcionando tão incrivelmente bem como a sua. Nenhum banheiro por perto. Conforme o bloco avança, alalaô, a cara de vontade de ir ao banheiro logo se torna uma máscara de desespero. Uma mulher que acabei de conhecer olha para os lados como se estivesse procurando um parceiro da máfia. Fixa os olhos em mim e provavelmente me reconhece pela cara de desespero. Amiga, vamos fazer uma cortininha?

Não há um banheiro químico por perto e algumas ruas já viram mijódromos consensuais. Os homens procuram paredões e descarregam sozinhos; as mulheres preferem — ou melhor, precisam — se agrupar. Um pau seria muito melhor numa horas dessas, reclama uma das moças, logo repreendida pelas demais. Já somos agora um grupo de sete mulheres e a missão é encontrar o lugar ideal: meio escondido, mas não tão reservado que seja perigoso; um espaço que esteja à vista, mas com alguma privacidade. E na rua. Não é fácil. Alguém finalmente avista um canto próximo ao Passeio Público.

A cortininha consiste em uma barreira de mulheres que faz a guarda para outras; um grupo de para-militares em postura de defesa, atentas e alertas, dando cobertura para a mijona, que agacha, indefesa, e abaixa as calças na rua. Algumas soldadas da cortininha têm cangas, que são os escudos. Outras apenas permanecem de pé, vigilantes. Os corpos ficam unidos, fazendo um muro humano. A troca de guarda só acontece quando o ruído do xixi silencia e a voz da moça da vez anuncia que acabou. Somos oito bexigas. O conjunto só desarma quando todo mundo ficar feliz.

Enquanto espero a minha vez, me dou conta de que a cortininha funciona quase automaticamente, mesmo com pessoas que mal se conhecem: todas já fizemos isso tantas e tantas vezes, na praia, em blocos, em festas. Nesse solidário e articulado sistema de mijadas, começamos a conversar. Uma conta que ama o marido, mas o sexo acabou faz tempo e bateu um desespero. A outra, paulistana, veio passar o carnaval no Rio depois de se separar. Uma outra cansou do Tinder e decidiu dar pra alguém que conheceu ao vivo. A outra só quer um isqueiro.

A cortininha desarma. Uma macha fétida de urina jaz no chão do Passeio Público. Cometemos um crime, alguém lembra, já chamando o camelô para comprar a próxima cerveja, e em poucos minutos dispersamos, delirantes e aliviadas, unidas e espalhadas, na multidão do bloco que ainda duraria uma madrugada. A cortininha é mais efêmera que uma fantasia de carnaval.

Dias depois era 8 de março e uma manifestação de mulheres tomava conta do centro do Rio — ali mesmo, onde dias antes passava o bloco — unidas pela legalização do aborto, contra a reforma da previdência, por igualdade salarial. Sempre achei que o pós-carnaval significava uma virada tão brusca no ano. Será mesmo? É março no Rio, chove dia sim, dia não, e seguimos fazendo a cortininha.

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