Aquarius, uma sessão afetiva

As músicas e as músicas de Kleber Mendonça Filho num velho cinema da Barra da Tijuca

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
5 min readSep 8, 2016

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Churros del Uruguay, o caminhão que estacionava sempre na Praça do Ó, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (autoria desconhecida)

Já há uns dois meses minha mãe sofreu uma crise severa de hérnia de disco que comprimiu um nervo e a deixou de cama por mais de trinta dias, com dores, restrições, tristezas e a mobilização de um monte de gente. Aos poucos a rotina se restabelece, os remédios diminuem e a gente dá uns passinhos aqui e ali pra ver o dia, as pessoas, a cidade. Numa dessas tardes de almoço de domingo, ela disse que passara o dia anterior ouvindo músicas do Taiguara pelo YouTube, e que adoraria ter um CD dele. Eu a convenci a ir até a livraria mais próxima, que ainda vende CDs, e, ao contrário do que ela imaginava, o atendente da loja não riu da cara dela, e sim localizou dois discos do cantor. Mamãe voltou pra casa contente, dizendo, em uma de suas expressões típicas, que o Taiguara era “do tempo do onça”. Fiz um post-it mental para procurar músicas do Taiguara para ouvir também. Desde sempre meus pais ouvem música diariamente: a minha mãe é da MPB, o meu pai é do jazz, e eu acabei sob a influência de ambos, pesando mais pro lado materno.

Poucos dias depois, com o post-it mental ainda por cumprir, busquei B. na nossa Barra da Tijuca. Passamos boa parte de nossas vidas nos conhecendo de vista do mesmo colégio, e resolvemos ficar melhores amigas pouco menos de um ano antes de ela se mudar definitivamente para Paris, onde está há uma década. Naqueles meses em que fomos vizinhas, ela gravou uma série de CDs que ainda hoje levo no carro. Alguns tinham Blossom Dearie seguida de Henry Mancini e Jamiroquai; noutro uma música do Art Garfunkel que emendava num hit dançante do New Radicals, e logo depois vinha “Hang on little tomato”, da Pink Martini, que se tornou uma espécie de hino pessoal de autoajuda depois que ela foi embora, num tempo pré-whatsapp. A minha formação musical, portanto, ficou cada vez mais… exótica.

A nossa Barra da Tijuca mudou muito desde que B. foi embora, a ponto de eu errar o caminho ao sair da casa dela e ir para o nosso restaurante preferido, onde comemos um carpaccio que ainda preserva o gosto de 2006. E de lá para o cinema, num dos muitos shoppings bizarros do bairro e que, à primeira vista, parece fantasma, e se você investigar um pouco mais, ainda assim, parecerá esquecido pela humanidade. Há mil anos assisti Cinemas, aspirinas e urubus ali, congelada pelo ar condicionado que se tornava ainda mais inclemente em uma sala que só continha uma pessoa. Foi portanto uma surpresa encontrar cerca de trinta cadeiras ocupadas na plateia naquela noite. B. iria embora no dia seguinte, eu estava melancólica e munida de meias e um paninho — ou cachecol — no qual me enrolar, o que foi desnecessário. O filme era Aquarius, do Kleber Mendoça Filho, com direito a trailer de Mate-me, por favor, da Anita Rocha da Silveira (e nossos cutucões orgulhosos do primeiro longa de uma amiga que era companhia constante naquela época em que todas habitávamos o Rio de Janeiro).

Dançamos contidamente nas poltronas ao som de “Toda menina baiana”, que embala uma festinha logo no começo do filme. Cantarolamos em outros momentos. Vibramos com a atuação da Carla Ribas, que interpreta Cleide e, na “vida real” é mãe do nosso melhor amigo. Deliramos com a Sonia Braga, sua beleza estonteante e aquele picumã (sofremos de queda de cabelo, mas quem não deliraria?). Ignoramos os ruídos esquisitos da refrigeração da sala e saímos do cinema e do shopping bizarro e voltamos para aquele trecho da nossa Barra que agora ostenta estações de metrô, uma estação do BRT, elevações e descidas para evitar sinais de trânsito, casas noturnas duvidosas e monumentais. O que já foi o Porcão se deteriora. O que já foi um espaço a mais para ver o céu exibe um hotel que parece um caixote. A Pedra da Gávea compete com a ponte faraônica superiluminada que murcha o sorriso ao entrar no bairro. “Nada ficou no lugar”, cantaria a Adriana Calcanhotto.

Foram muitos os tapumes que caíram na cidade, alguns revelando paisagens que se tornaram áridas, outros convidando a passeios onde antes era impensável, todos implicados em métodos controversos de se revitalizar o espaço urbano. Nos dias que se seguiram ao Aquarius, fui pensando nesses lugares onde uma Clara (personagem da Sonia Braga) poderia ter feito alguma diferença. E fui pensando também numa troca de mensagens sobre o filme, no dia seguinte em que o assisti, em que M. dizia que também não saíra do cinema tão arrebatado quanto depois de O som ao redor, mas que o filme ficara ali sedimentando de outra forma, mais sutil, mas fortemente perturbadora. É quando as coisas nos ganham, afinal, quando vão aparecendo na cabeça com o passar dos dias, quando antes de dormir, já meio grogue do comprimido, você lembra daquela cena em que os personagens, cabeças apoiadas nas barrigas e pernas uns dos outros, ensaiam uma mistura de risada com respiração, esparramados ao sol, e ri um pouquinho também.

Hoje quando entrei na casa da minha mãe, ela ouvia “Hoje” do Taiguara, uma das canções de Aquarius. “A vida num momento”, pensei. O post-it mental começou a se transformar nesse texto, passamos a tarde comendo pipoca no sofá, assistindo a um velho filme do Woody Allen. Senti vontade de ir até a minha Barra da Tijuca e buscar B. para um programinha qualquer. Voltei para casa, porém, e apaguei uma conversa que faria aniversário no celular, pensei no tanto que ainda temos pra demolir, e no quanto é difícil fazer isso sem botar tudo abaixo, no quanto é difícil preservar os edifícios, tantos já em ruínas sem nem a gente perceber.

P.S.: A propósito de Aquarius, a Mariana Filgueiras, repórter do "Segundo Caderno", fez uma matéria para O Globo chamando a atenção para a cena em que O sonâmbulo amador, romance do José Luiz Passos, aparece em primeiro plano, leia aqui. Saulo Dourado fez para o Overmundo uma análise bem bacana das relações entre as duas obras, por aqui.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).