Cansei da literatura

Um texto para ser lido em voz alta nas confraternizações de fim de ano

Paulliny Tort
ORNITORRINCO site
3 min readDec 12, 2016

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Cansei da literatura. Cansei dos verbos reflexivos e seus pronomes. Cansei dos nomes. Cansei das telas de cinema. Cansei do Woody Allen. Cansei. Cansei da bondade. Cansei do senso de justiça e do perdão. E aprendi a rejeitar todas as virtudes. Cansei da amizade e da camaradagem. Cansei dos tampos de mesa molhados de cerveja. Cansei dos baralhos. Cansei do trabalho. Cansei da saúde. Cansei dos vitrais das igrejas. Cansei dos santos barrocos. Cansei das formas singelas. Cansei dos padres. Cansei dos homens. Cansei das crianças e das mulheres. Cansei dos parques de areia. Cansei da família e da hora do jantar. Cansei. Cansei das árvores e dos passarinhos. Cansei do verão. Cansei dos pinheirinhos de natal. Cansei da natureza e do desenvolvimento social. Cansei dos cinco oceanos. Cansei dos peixes na lagoa. Cansei do céu azul, da água clara. Cansei das imensidões. Cansei de deus. Cansei da fé e da coragem. Cansei da beleza. Cansei do carinho, do afago. Cansei da gentileza. Cansei do saldo bancário. Cansei das embalagens de biscoitos. Cansei da alegria. Cansei dos blocos de carnaval. Cansei dos corpos suados. Cansei dos encontros marcados. Cansei do riso. Cansei do samba, de que nunca gostei. Cansei da dança. Cansei da chuva. Cansei da vontade. Cansei da prosperidade. Cansei da mesa farta. Cansei dos anéis de formatura. Cansei dos retratos de turma. Cansei dos campeões de futebol. Cansei das corridas de cavalo. Cansei dos sobreviventes de desastres. Cansei das rosas, dos frágeis insetos. Cansei da inocência. Cansei da liberdade dos outros. Cansei dos besouros. Cansei dos bichos de estimação, dos ursos de pelúcia. Cansei das vacinas. Cansei dos doadores de sangue. Cansei dos afetos. Cansei das mãos e dos cheiros. Cansei dos cabelos. Cansei das bicicletas. Cansei da grama. Cansei das caminhadas. Cansei. Cansei dos gênios. Cansei da lógica. Cansei da aritmética. Cansei dos esquadros. Cansei dos quadros. Cansei dos ângulos retos, dos agudos, dos obtusos. Cansei dos fluidos. Cansei das simetrias e das coincidências. Cansei das taças de vinho cheias até a borda. Cansei da maconha. Cansei dos filtros nos cigarros. Cansei das placas de trânsito. Cansei da sobriedade. Cansei da loucura. Cansei da tinta no papel. Cansei sobretudo do papel. Cansei do silêncio nas bibliotecas. Cansei dos banhos mornos. Cansei das vagas para deficientes. Cansei dos velhos. Cansei da poesia e da rima. Cansei das canções e dos sussurros. Cansei das paixões. Cansei da lua. Cansei das estrelas. Cansei dos sonhos e das esperanças. Cansei das promessas. Cansei do amanhã. Cansei da sorte. Cansei das enfermeiras. Cansei dos cartões postais. Cansei das coleções de selos. Cansei da vista na janela. Cansei dos aviões, dos planaltos. Cansei dos negros. Cansei dos brancos e dos japoneses. Cansei dos indígenas. Cansei das bichas. Cansei dos católicos. Cansei dos budistas. Cansei dos ateus. Cansei de toda a gente. Cansei da verdade. Cansei de tudo o que é decência e ventura. Cansei. E, se alguém atravessar meu caminho, que não me atire flores. E que não me faça delicadeza de qualquer espécie. Já me enervam os carneiros e as nuvens. As fotos de bebês, os gatos, os cachorrinhos. Cansei. Cansei do amor. Hoje, eu quero a guerra.

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Paulliny Tort
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Autora do Erva brava (Fósforo), vencedor do APCA 2021 e finalista do Jabuti 2022.