CEP 20.000 — Ninguém me contou, eu vi
Há uma nova e prolífica cena poética na cidade do Rio de Janeiro. Ninguém me contou, eu vi
Moro no Humaitá, bem perto do Teatro Sérgio Porto. Mais ou menos duas semanas atrás, fui até lá assistir uma edição do lendário CEP 20.000 (Centro de Experimentação Poética).
Para quem me lê fora do Rio e, por ventura, não conhece o CEP, imagino seja de interesse mencionar que o CEP, criado há mais de 20 anos pelos poetas Guilherme Zarvos e Chacal, é, sempre foi, lugar de resistência cultural, voltado em seus princípios conceituais (e na prática) à invenção — modos de fazer, de dizer, de estar, de ser arte.
No momento, há uma equipe zero bala e super ativa fazendo com que aconteça. Uma das melhores mentes da geração trabalhando na feitura da coisa é a do poeta e editor Santiago Perlingeiro — jovem, cheio de amor, leitor sensível da poesia que vem surgindo. Foi Santiago, todo sorrisos, quem me recebeu quando cheguei no teatro. Claro que o mestre Chacal também estava lá e foi muito carinhoso comigo.
A noite esteve versátil, com apresentações iluminadas de artistas com idades variando dos 20 aos 25 anos em média. A nós, o público, foi oferecido um turbilhão de epifanias sobre o que é estarmos aqui, neste mundo, nesta cidade, neste agora histórico. Vez em quando, exultante, mexendo o corpo assim e assim, daquele seu jeito simpático, Chacal vinha até mim. E eu só fazia dizer a ele: tá lindo, tá tudo muito lindo.
Infelizmente, não vou lembrar o nome de todas as pessoas que se apresentaram. Sou um forasteiro retornado para a cidade há pouco. E infelizmente já não tenho a qualidade de esponja, de quem absorve tudo ao mesmo tempo, que tive um dia.
Dos artistas que passaram pelo palco naquela noite, marcou-me a Ana Fainguelernt (Ana Frango Elétrico), por seu inusitado, pelo entortado dos sentidos, pelo tom bem humorado e por vezes ácido de seus escritos. Gostei da Julia Mestre, cantora e compositora bem enraizada na MPB. E do Chico Brown, que fechou a noite com uma banda eclética, trituradora de sons, fazendo geral dançar até os corpos se encharcarem de prazer.
E quero destacar o trabalho de dois escritores mais. Estavam com seus livros para venda, então tive a oportunidade de trazer comigo um exemplar de cada. Li e me aprofundei um pouquinho sobre o trabalho deles.
Carlos Meijueiro — Janela Destravada. Composto por textos que Meijueiro postava na internet, resulta numa variedade de fragmentos muito fortes em si mesmos, mantendo porém a força como conjunto, em que a voz autoral se mostra solta, arejada, mas pontiaguda.
Ao contrário do que costuma acontecer num processo de edição, Janela Destravada foi feito de modo colaborativo por mais de vinte pessoas, conversando e chegando aos resultados a partir de um grupo no Facebook. Não houve hierarquia, ou seja, um editor dando o aval e a palavra final. Os exemplares foram encadernados manualmente por uma força de mutirão. O livro que tenho neste momento em mãos é um objeto incrível.
Bonito é perceber que, frutos das andanças de Meijueiro (seja de ônibus, metrô, bicicleta ou a pé), seus escritos sempre são um lugar que passa, que não se fixa, que está em transformação. É do trânsito, do deslocar-se pela cidade que aparece sua prosa de observação, descritiva, porém nunca fria nem distanciada. Meijueiro tem necessidade de participar, de estar presente, com a escuta do corpo todo aberta. Seus textos não sabem olhar a urbe sem se impregnar, sem se sujar dela. Como disse de si Roberto Piva: “não sou o poeta da cidade, sou o poeta na cidade.
Este trecho da obra dirá bem: “viva os poetas de banheiro, os de divisória de mesa de biblioteca e os de mesa de xadrez de praça pública, os de calçada com cimento fresco, os de orelhão e os de poste, os de banco de praça e os da parte de trás de banco de ônibus. Poesia pública e anônima. O que importa é a poesia viva.” O interesse maior do autor de Janela Destravada parece estar, mais do que na cidade, nas pessoas com que ele cruza, das quais se irriga, com as quais se vê ligado e se amalgama.
Italo Diblasi — O Limite da Navalha. Nunca esqueço do que, segundos antes de ser executado pela ditadura de Franco, durante a Guerra Civil Espanhola, teria dito Federico García Lorca. Conta-se que, olhando para o céu em vez de para o rosto dos soldados que o matariam, o poeta ainda teria tido a dignidade de perguntar: vocês realmente vão ter coragem de me matar com uma lua dessas?
É apenas uma versão. Dificilmente aconteceu dessa maneira. Mas é assim que gosto de acreditar. O que de factual e histórico temos é que aos 38 anos o poeta foi assassinado porque, segundo o ex-deputado Ramón Ruiz Alonso, que entrou para prendê-lo na casa em que se refugiava, Lorca “com sua pena fazia mais estragos do que os outros com suas armas.”
Lorca está no livro de Diblasi porque os seus versos usados na epígrafe colocam os poetas justamente na condição daqueles que são esse “pulso ferido que sonda as coisas do outro lado.” O poeta sendo então um médium selvagem. O outro lado não necessariamente como privilégio dos místicos. O outro lado pode que sendo (e isso nunca será pouco) o desejo, as pulsões, um percurso e o acesso do sensível.
Além disso, o poema do conjunto de que mais gostei (Um Manifesto, Nem Isso) faz evocação explícita ao poeta espanhol. Notem a percepção trágica de Diblasi: “Hoje é o aniversário da execução / de García Lorca e se alguma coisa / mudou desde então, foi pra pior (…) basta desse teatro — vamos ver / até onde eles estão dispostos / a levar isso aqui (…) eles estão dispostos a levar / a coisa bem longe / desde que não tenham que fazer / acontecer com as próprias mãos”.
Estes e alguns outros, como por exemplo, “eu tenho fome de vertigem”, “vencer o corpo / pela intensidade”, são versos da obra que romperam o limite e me cortaram fundo.