Dez andares e uma xícara de açúcar

Clara Meirelles
ORNITORRINCO site
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3 min readJan 18, 2017

Estamos em 2017 e uma assinatura de jornal impresso é uma das coisas mais obsoletas que se pode ter. Um jornal impresso, nos dias de hoje, além de desinformar e irritar, serve para eventuais obras em casa e também para forrar a caixa de areia das minhas gatas, Domitila e Pinguinha, que apreciam leituras de banheiro. Pois aqui em casa, qual homens de Neanderthal, ainda temos — para amenizar a confissão, informo que temos apenas no final de semana, de sexta à domingo. Uma das resoluções de ano novo foi acabar definitivamente com esse resquício do passado.

O homem de Neanderthal, ao viajar para o ano-novo, cancela temporariamente a assinatura de jornal. Eu e meu namorado, porém, esquecemos de cancelar. Minha mãe, escalada para alimentar as gatas na nossa ausência, reparou no descuido (“você é mais esquecida que a sua prima Zoé”) e passou a pacientemente recolher o jornal. Um dia, porém, reparou que a revista misteriosamente chegou depois dos cadernos. Outro dia, reparou que o jornal andava chegando bagunçado, aberto, com os cadernos trocados. Era óbvio que algum vizinho, vendo que a casa estava vazia, meteu-se com meus jornais. O impresso, que já não tinha nenhuma utilidade, passou a ser uma questão de honra. O último resquício da minha infância. O marco de uma geração! Quem estava mexendo no meu jornal impresso?

Moramos nesse prédio há um ano e meio e pouco sei sobre qualquer um dos meus vizinhos. Nunca conversei com qualquer um deles mais do que os minutos que o elevador leva do térreo ao décimo andar — o suficiente para reclamar do calor e de uma eventual taxa extra do condomínio. Não os reconheceria na rua, fora do contexto do prédio. Minha mãe, criada no subúrbio do Rio, tem até hoje amigos que conheceu na rua em que morava. Ela costumava dizer que os vizinhos são quem pode realmente ajudar em emergências e são as verdadeiras companhias, algo que jamais fez sentido para mim. Nunca pedi sequer uma xícara de farinha para qualquer um dos meus co-habitantes — e, sinceramente, não gostaria de ser importunada com qualquer pedido. Vejo da minha varanda um bebê que cresceu muito no último mês e já começa a dar uns gritinhos. Tenho a sensação de que o pai recolhe a criança ao menor sinal de que ela possa estar incomodando os vizinhos.

No filme "O Pecado Mora ao Lado", Marilyn Monroe se muda para o prédio novo e começa uma relação com o seu vizinho. Já no documentário "Edifício Master", do Eduardo Coutinho, me impressiona a quantidade de universos que convivem em um mesmo prédio de Copacabana sem nunca terem se tocado. O filme mostra 37 moradores que não mencionam ter trocado entre si as histórias de vida que narram para a câmera. Nossos apartamentos do décimo andar são como as pequenas ilhas incomunicáveis do Master, com a diferença de que o meu jornal continuava sendo manuseado.

Será que o ladrão começou a leitura pelo suplemento de cultura? Ou estaria mais interessado na falência do estado do Rio? Poderia estar de olho nos classificados, quem sabe. Tentei acordar cedo dois dias seguidos, para flagrar o ladrão no ato do roubo, mas fui dormir tarde e nem ouvi o despertador. O plano infalível perdeu para a maratona de séries de janeiro. Me resignei: agora teria que compartilhar o jornal.

Deixei na porta um bilhete: “Bom dia. Por favor, só não manche de café.”

No dia seguinte, a resposta: “Achei que você estava fora por uns dias. Feliz ano novo.”

Isso bastou para que o ladrão misterioso parasse definitivamente de mexer no jornal. Como não assinou a mensagem, sigo sem saber quem foi.

A assinatura do jornal impresso acaba definitivamente em alguns dias e imagino que o misterioso vizinho vai pedir a senha do online.

Ok, talvez eu tope dar a senha. Mediante uma xícara de açúcar.

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