Diário do Festival do Rio 2016 — Parte II

Um conto de juventude feminina na Tunísia e a doce dor de Manchester à beira-mar

Lucas Gutierrez
ORNITORRINCO site
4 min readOct 12, 2016

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Assim que abro meus olhos (2015) / dir.: Leyla Bouzid

Farah é uma jovem prestes a entrar na faculdade. Vocalista da banda Joujma, ela é politizada, namora escondido e quer estudar música. A família quer que Farah curse medicina.

A sinopse de Assim que abro meus olhos não traria nada de novo não fosse essa história situada na Tunísia pré-revolução, no verão de 2010, antes da derrubada de Ben Ali, que governou o país por 23 anos.

Baya Medhaffar, a protagonista Farah

Logo, se esse tipo de história já foi contada tantas outras vezes, é inegável o peso que tem um filme como esse, como registro de uma sociedade e uma juventude — às vezes nem — tão distantes da nossa.

Ancorado nas boas atuações naturalistas da protagonista Baya Medhaffar e Ghalia Benali (que interpreta a mãe da moça), o filme da cineasta Leyla Bouzid ainda impressiona pela música. As canções, compostas por Khyam Allami, são estranhas, intensas e hipnóticas, e possuem papel fundamental no desenvolvimento da personagem principal e no andamento da história.

Uma das cenas mais bonitas é justamente aquela que enfoca um dos ensaios, quando a câmera vai abrindo pacientemente conforme os integrantes da banda vão entrando na execução da música.

Manchester à beira-mar (2016) / dir.: Kenneth Lonergan

Se caísse na mão de alguns diretores, Manchester à beira-mar poderia ser um dramalhão piegas. Mas esse filme não ‘caiu’ nas mãos de Keneth Lonergan. Escrito e dirigido pelo nova-iorquino, Manchester é um drama de sensibilidade tocante, mas que, inteligentemente, foge o tempo todo dos clichês e armadilhas do gênero.

A atuação de Casey Affleck dá o tom de Manchester à beira-mar

Dramaturgo indicado ao Pulitzer, Lonergan estreou no cinema com o roteiro de Mafia no divã. Antes de entregar o texto de Gangues de Nova York, escreveu e dirigiu seu primeiro longa, Conte comigo (indicado ao Oscar de roteiro e atriz em 2000). Mais de uma década depois veio o obscuro Margaret (2011). Em seu terceiro longa, ele demonstra um domínio completo do ofício.

As escolhas de fotografia equilibram com uma paleta de cores quentes o frio da região da Nova Inglaterra, evitando sobrecarregar o clima invernal da maior parte do filme.

O uso elegante da música vai pelo mesmo lado, atenua os momentos mais dramáticos em vez de intensificá-los, quase como um ‘carinho’ no personagem principal (para citar a explicação dos irmãos Dardenne, que justificaram desta mesma forma o uso da música em O garoto da bicicleta).

Há ainda os vários momentos de humor cotidiano que também quebram o peso da narrativa e ainda acrescentam vida, nuance e realismo à relação dos personagens.

Finalmente, chegamos às atuações. E é claro de ver que Lonergan também sabe muito bem o que está fazendo ao dirigir seus atores quando vemos o desempenho de Casey Affleck. Vivendo um homem com uma história traumática, um prisioneiro de si mesmo (o que fica evidenciado pela brilhante direção de arte, que faz de seu quarto em Boston quase uma cela), ele ao mesmo tempo evita maneirismos ou grandes arroubos de performance, criando um trabalho ‘pé no chão’, que sintetiza a proposta de todo o projeto e valoriza os momentos de clímax de seu personagem (e o fim da cena na delegacia é de cortar o coração).

Por mais que seja sempre bom ver Michelle Williams e Kyle Chandler em cena, e que o jovem Lucas Hedges brilhe, o filme é mesmo de Casey. E, é claro, de Keneth Lonergan.

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