Diário do Festival do Rio 2016 — Parte III

A maior rivalidade do boxe nacional e um Nelson Rodrigues experimental

Lucas Gutierrez
ORNITORRINCO site
3 min readOct 14, 2016

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A luta do século (2016)/dir.: Sérgio Machado

Alguns rivais estão destinados a se enfrentarem pra sempre.

A rivalidade de Reginaldo Hollyfield e Luciano Todo Duro já é interessante por si só. Resiste mais de 20 anos depois do primeiro confronto — já foram 5, e tem espaço pra mais — ainda que os próprios lutadores pareçam ‘não reconhecer os limites entre provocação e teatro’. Na mão do baiano Sergio Machado (Cidade Baixa, Tudo que aprendemos juntos) essa história se torna ainda um maravilhoso documentário, uma espécie de primo trash do clássico Quando éramos reis, de Leon Gast.

Partindo deste vídeo, Machado reconstrói jornalisticamente a origem da inimizade com um rico material de arquivo para, em seguida, nos trazer à presença dos dois hoje, através de uma elegante câmera que observa o dia a dia dos dois.

A luta do século é rico em melancolia, mas o diretor não pesa a mão sobre o seu tema em momento algum, além de demonstrar um respeito admirável pelos seus personagens.

Inteligentemente, Sergio Machado referencia imagens icônicas dos filmes de boxe, em especial da série Rocky, mas o faz com sutileza e sensibilidade, num movimento quase antropofágico de absorver um clássico para compor uma imagem derivada, dotada de um novo sentido.

E ainda leva o público às gargalhadas com sequências como as de Todo Duro sendo provocado pelos rapazes da rua ou de Reginaldo subitamente subindo o tom de uma conversa até então amistosa (“Eu vou lhe esbagaçar!”).

No fim, A luta do século pinta o retrato de dois homens que se odeiam, mas que tem suas existências validadas e valorizadas justamente pela existência do rival. E sabem disso.

A serpente (2016)/dir.: Jura Capela

“O texto do filme que vocês vão ver agora é puro Nelson”, anuncia o diretor Jura Capela, antes da sessão.

Orgulhosamente experimental, A Serpente é uma adaptação do texto teatral de Nelson Rodrigues que narra a relação entre duas irmãs casadas morando sob o mesmo teto, e o que acontece quando uma ‘cede’ o marido à outra para satisfazê-la sexualmente por uma noite.

Em cena, uma surrealista mistura de teatro com Cinema Novo, um encontro de Bela Tarr com Zé Celso, David Lynch e Nelson Rodrigues.

A ousadia se desdobra ainda na escalação do elenco. Matheus Nachtergaele, um ator corajoso de carreira corajosa, diz que, para o principal feminino, ele e o diretor estavam atrás de uma atriz que emulasse as qualidades de Lucélia Santos.

“A Lucélia é uma das razões de eu fazer cinema”, ele confessa.

Acabaram decidindo pela própria Lucélia, escalada aqui no papel das duas irmãs.

As fortes atuações de A Serpente são complementadas ainda por participações poderosas de Cellia Nascimento e Sílvio Restiffe.

A fotografia P&B de Pablo Baião é linda; figurino e direção de arte são elegantes e criativo (a cama-palco é um achado); e a trilha de Fábio Trummer e Pupillo, hipnótica.

No fim, o projeto mais fascina e impressiona que emociona. A catarse em cena não passa pro lado de cá, mas a experiência não se torna menos deslumbrante por isso.

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