Eu não sei cantar

O que acontece quando o talento e a vocação não se encontram na mesma pessoa

Paulliny Tort
ORNITORRINCO site
4 min readSep 17, 2016

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Aos 13 anos, estudei canto lírico em uma escolinha de música que ficava perto da minha casa. Eu tinha um professor excelente, um repertório razoável e uma audição marcada para dali a seis meses. Estudava teoria, praticava no banheiro, na sala, a caminho do colégio. Uma vocação incrível para ópera me dominava. E eu me imaginava cantando maravilhosamente, feito uma menina de nove anos que vi outro dia em um desses odiosos programas de cantores. Não me faltava ânimo, vontade, dedicação. Mas me faltava um elemento decisivo: talento.

Talento X Vocação

Há alguns anos, assisti a uma entrevista do João Ubaldo Ribeiro em que ele dizia que nada é mais triste que não encontrar, na mesma pessoa, talento e vocação para uma determinada coisa. Ele citou o caso de um amigo que tinha uma facilidade incrível para o violão, mas optou pela carreira de bancário; tocava só nos churrascos de domingo. Aquele sujeito era dotado de talento, mas não de vocação para música. O Ubaldo se angustiou muito por isso. Mas não me parece que seja esta a configuração mais grave. Porque pior que ter um pedaço de pão e não ter fome é ter fome e não ter um pedaço de pão. Posso afirmar que, quando decidi estudar canto lírico, o que me faltou foi pão.

Minha audição foi catastrófica. Hoje, acho engraçado. Mas, na época, pareceu o fim do mundo e pensei que nunca mais conseguiria andar na rua com a dignidade de antes. Embora eu não seja — nem de longe — uma pessoa considerada tímida, ainda tenho dificuldade para cantar em público. Até meu “parabéns pra você” é um tanto acanhado, engolido. Há algo, porém, que não se perdeu: o gosto pela música. Canto sempre que não tem ninguém por perto. Desafinada, fora do tempo, errando a melodia. Sou, definitivamente, uma pessoa que a-do-ra cantar. Então me pergunto: não canto por quê?

O medo de não estar à altura, de não cumprir com certas exigências mínimas, de decepcionar os críticos, os entendidos do assunto (ou, simplesmente, as pessoas que têm ouvidos) decerto ajudam a promover essa minha retração. Sartre não exagerou quando disse que o inferno são os outros. Nunca fui um tipo muito dado à opinião alheia, mas, no quesito capacidade de cantar, esbarro no medo do ridículo. Mesmo sabendo que o ridículo, não raro, gera as situações mais interessantes.

Marguerite X Neymar

Semana passada, fui à locadora — sim, eu ainda faço isso — e peguei o filme "Marguerite", do diretor Xavier Giannoli. A trama é baseada na história real da americana Florence Foster Jenkins. No filme, Marguerite Dumont é uma mulher rica que promove concertos para a alta sociedade em sua mansão. Como está convencida de que tem uma belíssima voz, ela é sempre a atração principal desses eventos. Mas, embora cante muito mal, ninguém diz isso a ela. O que acontece então? Marguerite continua cantando. É o que possivelmente teria acontecido comigo se as pessoas tivessem motivos para me bajular e eu tivesse outra medida de autocrítica.

Florence Foster Jenkins e capa do filme "Marguerite"

Dizem que Florence Foster Jenkins — a verdadeira Marguerite — se tornou conhecida em Nova York, nos anos 40, como a “diva do grito”. Filha de um banqueiro, ela dedicou toda sua vida à música, promovendo inúmeros concertos beneficentes, embora nunca tenha tido talento. Se pararmos para pensar, ainda hoje pululam Marguerites entre ricos e famosos. Basta lembrar que Xuxa já foi cantora, Ana Maria Braga gravou disco e agora até o futebolista Neymar deu para desafinar fora do banheiro. Essas corajosas pessoas violentam em público as sete notas musicais sem o menor constrangimento. Há, no entanto, diferenças consideráveis entre Jenkins e os novos mentores do grito.

Amor X Show Business

O que pega mal nesses casos — o da Xuxa, o da Ana Maria Braga e o do Neymar, só para citar os mesmos exemplos — é que não parece que eles estão forçando a barra por vocação, por amor à arte. Parece apenas que estão tentando descolar mais um troco, para além dos muitos trocos já descolados em outras fontes. Deve haver, sim, uma realização pessoal, um prazer em cantar fora do box. Até porque cantar é delicioso, terapêutico. Mas não sejamos ingênuos; o show business não oferece concessões desinteressadas.

Jenkins, por sua vez, amava a música. Assim como a personagem Marguerite, ela estudava muitas horas por dia, possuía um repertório rico e uma vocação inabalável. A falta de talento corroía sua imagem pública, mas não seu encanto pela arte. Para ela, não havia inferno, porque os outros, de certo modo, não existiam. Estava cega para o mundo. No centro do seu universo, existiam apenas ela e a música e todo o êxtase que se pode extrair dessa relação.

Estou convencida de que esta é a forma ideal de nos relacionarmos com nossas aptidões: dar mais importância às vocações que aos talentos. Em última análise, o talento é para os outros. É para que nos meçam, para que nos qualifiquem. Ao passo que a vocação é para nós mesmos. Não que o talento seja desimportante, prescindível. Pelo contrário. Mas nossas inseguranças em relação aos nossos talentos não deveriam nos paralisar, não deveriam impedir que façamos aquilo que mais gostamos de fazer. Então cantemos como Jenkins, escrevamos como Jenkins, desenhemos como Jenkins. Com uma dedicação total, com um amor incondicional, e, sobretudo, cegos para o mundo.

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Paulliny Tort
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Autora do Erva brava (Fósforo), vencedor do APCA 2021 e finalista do Jabuti 2022.