Eu não tenho espírito olímpico

Não mesmo, desculpa.

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
3 min readAug 8, 2016

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Ciclismo de estrada feminino passa pelo Horto na Rio 2016.

A ciclista holandesa que liderava a prova de 140 quilômetros de pedaladas pelo Rio de Janeiro teve seu acidente registrado numa filmagem que me fez perguntar ao meu pai se ela tinha sobrevivido. Numa curva da descida da estrada da Vista Chinesa, ela capota e jaz torta no meio fio. As notícias são de que a atleta sofreu concussões e fraturas menores, embora parecesse morta ao cair da bicicleta.

O ginasta francês calculou mal a aterrissagem após um salto e sofreu uma fratura tão inacreditável na perna que fez parecer que suas articulações são feitas de borracha, tão improvável é o ângulo de seus ossos na fotografia que causa certo enjoo.

Na primeira bateria da natação modalidade costas — por si só uma categoria melancólica da atividade — três atletas de países pouco representativos de vitórias e medalhas nadam nas raias centrais enquanto todas as outras ficam vazias. Uma das nadadoras tem apenas treze (TREZE) anos, é a atleta mais jovem na competição, talvez nas Olimpíadas, e em comum com as outras competidoras usa uma espécie de macaquinho, eu me pergunto quando é que os maiôs caíram em desuso, e tem o corpo em um estranho formato de triângulo, ausência quase total de seios, um pouco à maneira das ginastas, entretanto longas e enormes.

Dois por cento da lordose de uma atleta da ginástica artística resolveria o problema de coluna de muita gente, e não consigo não achar patéticas as coreografias que elas executam entre um salto mortal e outro. Por outro lado, poderia assisti-las nas barras assimétricas por horas a fio, imóvel no sofá.

Durante o almoço tentamos entender o motivo de tantos carros, motos e afins acompanharem o ciclismo de estrada, que nos fez largar a cerveja na mesa para ver as bicicletas passando pelo bairro, velozes como foguetes. Particularmente, eu tentava entender o motivo de alguém pedalar por mais de duzentos (DUZENTOS) quilômetros (no caso dos homens), assim como no íntimo ainda não faz muito sentido saber que as pessoas correm mais de quarenta quilômetros numa maratona.

E o doping. Atletas que comemoram quando certo analgésico não é proibido, afinal precisam de doses cavalares para suportar as dores e contusões. E tudo o mais que me parece dolorosamente triste, como os levantadores de peso fazendo caretas e contorcionismos com o rosto.

Talvez eu tenha uma alma preguiçosa, ou talvez eu encare o mundo como um ambiente que já nos fornece complicações demais, e por isso cada vez mais busque um conforto e um bem-estar que não envolvam sacrifícios, o que por sua vez também se relaciona com as minhas ambições pequenas. Investigando um pouco mais, isso também atrapalha a minha compreensão acerca da magia do esporte. Da superação. Da garra. Etc. Não me relaciono bem com os corpos hipertrofiados, deformados e lesionados dos atletas. Alguém poderia argumentar que a trajetória de um bailarino não é tão diferente, e eu concordaria no ato. Na dança, ao menos, o lúdico (e tanto mais) me envolve. No esporte, a competição pura e simples apenas não se justifica para o meu coração aflito. É uma questão de empatia, provavelmente.

Acho que o pouco espírito esportivo que um dia eu tive foi aniquilado quando, já anos depois do episódio, encontrei um cartão de aniversário que recebi de um ex-namorado atleta, que escrevia, entre outras coisas, “seje feliz”. Ele terminou comigo pouco antes de se classificar para as Olimpíadas de Atenas. Foi um relacionamento infeliz, algo como constantemente chegar em último lugar, independentemente da modalidade. Rasguei o cartão em mil pedaços. Certamente o meu espírito olímpico morreu ali, naquele erro de conjugação.

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Julia Wähmann
ORNITORRINCO site

Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).