Eu não tenho espírito olímpico — parte 2

Ok, talvez eu tenha um pouco

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
4 min readAug 14, 2016

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"No time for losers"

As Olimpíadas estão matando as oportunidades de todos os brasileiros de gostarem de “Don’t stop me now”, a minha música preferida do Queen (transformada em tirinha de Pablo Stanley, aqui). A cada intervalo entre as transmissões dos jogos nos 134 SporTVs — “Somos todos campeões”, com mais ou menos entusiasmo — que brotaram na minha e na sua televisão, o anúncio de um carro toca uma versão esquisita do hit dançante do Freddie Mercury (enquanto noutra propaganda é uma canção do Nando Reis, que nunca teve muita chance no mundo). "We are the champions", por todas as razões, seria mais adequado. Como se vê, acabei me rendendo aos jogos, sobretudo à natação, ao tênis e à ginástica.

Os tenistas têm tantas manias que parecem sofrer de TOC. Nadal talvez seja o mais expressivo: ajeita o short, ajeita a camisa pegando na ponta de cada manga, uma de cada vez, mexe no nariz, numa orelha, no nariz, na outra orelha. E assim como ele, diversos atletas dispensam a primeira das três bolas fluorescentes antes do saque, com uma raquetadinha para trás. E ainda assim pedem uma terceira bola aos auxiliares da quadra quando só estão em posse de duas. A criatura joga a bolinha, o tenista raqueta a bolinha pra trás e efetua o lance com a seguinte, que tira do bolso do short. Numa partida entre Serena Williams e uma francesa, a primeira quebrou sua raquete ao perder um game — que erro de batismo desses pais — e a segunda reclamava com a mãe toda vez que errava ou que a oponente marcava um ponto. Me pergunto se os psiquiatras dessa gente frequentam os torneios também, e se os remédios indicados estão na lista das substâncias proibidas.

Dramin tem sido meu doping constante. A dificuldade para dormir vem de diversas questões. Partidas como o basquete masculino Brasil X Argentina ou o vôlei de praia Brasil X Suíça, disputadas ponto a ponto em duas prorrogações e um tie-break, também me fazem querer hibernar por doze horas. A ocorrência de ataques cardíacos e outras formas de crises deve aumentar consideravelmente a cada quatro anos. Não tenho estômago, nunca consigo assistir até o final, minha irmã se encarrega de me dar as notícias em tempo mais ou menos real, uma espécie de personal twitter olímpica.

Minha irmã, aliás, devia se candidatar a uma vaga de comentarista em um dos 458 canais de transmissão dos campeões. No domingo de dia dos pais saímos pra almoçar, e ela foi no banco do carona conectada a um site que atualizava a cada segundo os resultados da ginástica artística masculina. Diego Hypólito estava muito próximo da medalha, faltavam apenas dois solos para definir os resultados que poderiam também dar o pódio a Arthur Nory. Nosso pai nos aguardava num restaurante cheio de mesas na calçada, e emparelhei o carro em fila dupla para esperar o manobrista no instante em que o americano finalizava sua apresentação. Dava pra ver as imagens em um dos 523 SporTVs no visor do aparelho do restaurante, e antes que o manobrista — que nunca apareceu — aparecesse, ela abriu a porta, saiu do carro e adentrou o restaurante, que a essa altura já comemorava a dobradinha. Eu fiquei alguns segundos parada ouvido o barulhinho do pisca-alerta enquanto via o choro dos brasileiros, até perceber que minha irmã tinha me largado à minha própria sorte. Dei duas voltas emocionada pelo feito dos ginastas, estacionei quatro quadras à frente e quando cheguei na nossa mesa ela e meu pai tinham se posicionado, claro, diante de um dos 729 SporTVs que exibiam já não sei mais que esporte. Ela explicava pro meu pai detalhes que fazem a diferença nas execuções de ginástica artística, para em seguida fazer comentários pertinentes e muito entendidos sobre o tedioso mundo do pólo-aquático.

Pude interagir um pouco quando ambos começaram a se perguntar como é que determinados atletas escolhem certas modalidades que parecem tão específicas e distantes de nós, como arremesso de dardos, badminton ou marcha atlética. Deu pra fazer um paralelo com o Vídeo-chamada, curta da Julia de Simone e do Marcelo Grabowsky que reúne entrevistas que ambos realizaram com estudantes brasileiros bolsistas ao redor do mundo. O material é parte das pesquisas que os diretores fizeram para o longa Romance de formação, e nele estão retratados, entre outros, uma doutoranda de Arqueologia, mais precisamente focada em moedas antigas da Líbia, um rapaz que faz modelagem matemática de espermatozoides, uma moça que procura descobrir a função do açúcar que uma determinada espécie de planta produz.

Acho fascinante o grau de refinamento dos interesses, como é fascinante observar o gestual tão particular de alguns esportes. Os pulinhos meio laterais que precedem o arremesso de dardos, por exemplo. Adoraria saber como esses padrões são estabelecidos, como foi a origem dessa pequena coreografia. E me pergunto como foi a infância da estudante de moedas antigas da Líbia, ao mesmo tempo que tento imaginar o momento em que alguém decidiu que seu sonho era praticar salto ornamental em dupla. Há um alto grau de determinação nessas escolhas, tanto dos estudantes quanto dos atletas, o que faz parecer com que eles já acordam sabendo exatamente qual dos 981 SporTVs escolher e o que vão comer no café da manhã, no almoço e no jantar, decisões que, em determinadas épocas das existências mais genéricas de um jornalista ou de um escritor, revelam-se um pequeno tormento. Nessas horas, tenho recorrido à minha mãe e ao que ela tiver pra me oferecer, tanto em termos de comida quanto de canais, as ansiedades são tantas que ando incapaz até de organizar o suco matinal, cuja receita é a mesma há uns três anos. À noite não hesito: como uma tigela de morangos esperando o Dramin bater, e acordo dolorida como se tivesse nadado mil e quinhentos metros.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).