Flip para malogrados — ano 4

Impressões e registros da FLIP 2017

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
11 min readAug 3, 2017

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Viajo e volto. Estou sempre indo e estou sempre voltando. É isso não sair do lugar?

Paloma Vidal, Ensaio de voo

Quarta-feira, 26 de julho, primeiro dia de Flip: o aplicativo do celular diz que andei 6 quilômetros, ou 8.878 passos. Na quinta, 3,9 km, 5.796 passos. Na sexta, 6,5 km, 10.179 passos. Sábado, 4,7 km, 7.230 passos, e domingo, 3,5 km, 5.525 passos. Pode-se facilmente atribuir meu torcicolo à soma dessas distâncias e passos, sabendo que, em Paraty, os olhos miram o chão de pedras, o que requer uma inclinação cervical constante. A contratura muscular, porém, está mais ligada à cama desconfortável da casa que aluguei para essa temporada, e os outros seis amigos que trago comigo, cada um à sua maneira, reclamarão de dores causadas por uma hospedagem ruim.

Pela primeira vez em anos frequentando a Flip estudei as programações, oficial e paralelas, e montei um cronograma de mesas e conversas que não quero perder. Esqueço-me, porém, de algo que Thiago Camelo escreve em um poema de Descalço nos trópicos sobre pedras portuguesas, livro que veio lançar nestas paragens: tudo tende à entropia. Ou talvez tenha sido Bernardo quem falou, antes de entrar no poema.

Thiago veste uma camiseta azul que inesperadamente combina com o quadro que está quase atrás dele, na Casa Paratodos, e conversa com Alice Sant’anna sobre entropia, Slow TV, cachalotes, basquete e outros temas pouco usuais que serviram de matéria-prima para os poemas longos do livro novo, eles próprios uma versão literária correspondente das emissões transmitidas pela Slow TV nórdica. Em uma de suas primeiras falas, Thiago diz que as pessoas estão constantemente perguntando (e se perguntando): por que escrever poesia? Por que publicar um livro? Por que durante a Flip? A pergunta que o tem guiado, no entanto, é outra: por que não?

E porque sim, Thiago lê o poema mais extenso do livro, o mesmo que tem um verso em alemão e que treinamos, todos, desde a rodoviária do Rio até Paraty, sob a orientação de Suzana, que domina o idioma e as sutilezas da pronúncia: das erfrischende Getränk. É, também, o mesmo poema que diz: “Você já pensou em ser guarda de museu/ já pensou em observar o dia inteiro/ ao mesmo tempo/ obras e pessoas./ Você já pensou Ser guarda de museu/ o que você poderia testemunhar/ o que poderia admirar/ odiar calado, porque/ afinal/ você é um guarda de museu e opinar/ felizmente/ não é sua obrigação.”

Nos dias seguintes, Thiago repete, mais de uma vez, que acha que eu não vou gostar do livro, porque implico com o Karl Ove, que, ele confessa, tentou plagiar. Na terça-feira pós-Flip eu estaria em casa — ainda com torcicolo — pensando que queria plagiar o Thiago, especialmente aquele poema que tem Elisa, Bernardo, entropia e um post-it laranja pra marcar a página que diz que Curry, o jogador de basquete, está, à sua maneira, contribuindo para que o universo dure mais, ao dispensar o mínimo de energia em suas jogadas. Me pergunto se ele contribui, também, para que as dores musculares durem mais, mas não ouso cometer o sacrilégio.

Nos dias seguintes, também, as pessoas perguntam se Suzana é minha irmã, ou vice-versa, e noto que realmente me pareço com ela, ou que ela se parece comigo. É claro que, quando resolvemos mentir e dizer que sim, somos irmãs há um ano, desde que nos conhecemos, na Flip anterior, ninguém pergunta mais. De toda maneira, passamos a nos tratar como irmãs, e talvez por isso nos apaixonamos pela mesma sandália da nova loja de objetos e achados étnicos, pelos mesmos colares e cestos da velha loja de produtos indígenas, e pedimos até o mesmo peixe no restaurante. É ela quem descobre um prato fantástico no thai onde comemos em refeições alternadas: camarões que chegam à mesa dentro de metade de um abacaxi.

Em um outro almoço, Suzana e eu descobrimos que carregamos o mesmo sobrenome do meio, e só não engasgamos porque as esfihas de mesmo sabor que pedimos chegam em seguida. Eu a faço mostrar sua carteira de identidade, porque não é possível. E então devoramos as esfihas, mais por incredulidade que fome. Acho que é por isso que gosto tanto da Flip, que afinal é sempre que vou a Paraty, e creio que a maioria das mesas perdidas, apesar da programação impressa e colorida que guardo no caderno que já dura desde a edição de 2013 — aquela na qual Karl Ove acabou cancelando sua participação — acaba se perdendo em nome da comida, ou de seu entorno. Manu e Omar confessariam, também, que o restaurante thai é tão apelativo quanto os debates literários.

Na quarta-feira pós-flip, enquanto escrevo esse texto e consulto o caderno de anotações, percebo como, no fim das contas, esse foi o ano em que menos vi mesas. Em compensação, participei de duas. Ou mesmo as inventei, em certa medida. Os papos foram acolhidos na Casa do Papel, razão pela qual atravessamos a ponte do rio Perequê nessa edição que concentrou (quase) todas as atividades da Flip na rive droite paratiense. A Casa do Papel, montada por 4 empresas ou instituições ligadas às artes gráficas, entre elas a Lote 42, editora independente, é um espaço com jardim onde ocorrem mesas de bate-papo em frente a uma área tomada por parafernálias como mesa de carimbos, de corte e dobra, de serigrafia, de impressão tipográfica, enfim, um pequeno parque de diversões que nos faz parecer crianças hiperativas e imprimir uma série de pôsteres que nem tenho onde pendurar.

Na primeira das mesas arrisco mediar um papo com amigos e autores de textos da coleção Puxadinho, da Pipoca Press. Elisa e eu cogitamos ir com um saco de pão na cabeça, tamanha timidez. Bel, que teria embarcado na nossa, é a mais quieta do quarteto, que conta ainda com o Pedro Lima, editor da Pipoca. Mas quando entra na conversa é com uma fala afiada, daquelas que deixam todo mundo desconcertados. Penso na Vivian, sua mãe, e é o Lucas quem verbaliza, afinal: o sangue não nega.

Penso na Vivian, também, quando me sento na tenda do telão para assistir uma mesa da programação principal que reúne William Finnegan, jornalista e surfista, e Deborah Levy, escritora inglesa que conheci há cerca de 3 anos, em uma vinda dela ao Rio de Janeiro. Vivian era minha chefe, e me escalou para levar Deborah para passear. A vida de editora tinha desses momentos, conto alguns deles em um outro texto. Naquela tarde levei Deborah ao IMS e ao Parque Lage, e no meu carro coloquei um disco do Caetano pra ela gostar também. Nessa noite levo Elisa e Suzana pra praça, pra elas gostarem de Deborah. E gostam. “A swimming pool is a bit like a theather: there are exits and entrances, and people wear costumes.” — é uma das falas de Deborah que anoto no caderno. A outra é: “What we leave out of the stories is the most interesting character.”

Após a mesa, ambos autografam seus livros no anexo da livraria da Travessa. Thiago, que achou o escritor-surfista esnobe, engata uma conversa com Lucas, que desfaz a impressão — foi tarefa dele levar Finnegan para passear. A vida de editor ainda tem desses momentos. Depois de um tempo sugiro sairmos da livraria. Paloma chega pra nos encontrar, comento com todos que uma vez apresentei Caetano pra Deborah Levy, e que talvez gostasse de falar com ela, e eles dizem, em coro, como no verso em alemão do poema lido dias antes: é claro. Então resolvo comprar um livro da autora para entrar na fila de autógrafos, receosa de que ela não me reconheça. Mas a livraria já fechou, o que resolve a questão, ou só adia, porque Thiago não se conforma e, do auge de seu orgulho de ser de Jacarepaguá, vai até a entrada, convence o segurança de que este é um momento único na minha vida e por fim ele consulta um superior que me acompanha até o caixa, pra ter a certeza de que vou comprar um livro e dar o fora. Agradeço imensamente e entro na fila. Deborah me recebe como se eu fosse uma qualquer, portanto me apresento logo. “Uma vez nos conhecemos, quando você foi ao Rio lançar o Nadando de volta para casa. Eu trabalhava na editora que o publicou.” Tenho certeza que Elisa, Thiago, Lucas e Paloma estão mais apreensivos que eu. Deborah me reconhece — Elisa Thiago, Lucas e Paloma reconhecem, aliviados, a lembrança dela — mas confesso que não é tão esfuziante quanto eu imaginava. Eu poderia inventar uma outra versão desse encontro. Ou poderia ter cortado a narrativa antes, afinal já deveria saber qual é o melhor personagem de uma história.

O que ficou fora de quadro, também, foi o rosto de Adelaide Ivánova, de quem ouvi a voz recitar um poema — “vejo um/ atrevimento de/ sua parte/ não ter/ medo de/ morrer sua/ certeza que/ os carros vão parar para você passar eu/ pararia eu/ ainda paro/ fico olhando/ fingindo não/ olhar na/ contraluz os/ seus ossos/ seus pelos/ não aparados/ o seu pau que não chupei porque você não deixou”- e dizer que não podemos aceitar um feminismo que o machismo goste. Ela também citou Hilda Hilst, ao falar de suas expectativas em relação aos leitores: “Eu quero que o leitor exploda.” Repare, ela não disse querer que o leitor se exploda. Ela quer que o leitor exploda diante da leitura. A Casa onde ela falava já tinha fila quando cheguei, e a porta se fechou poucas pessoas à minha frente.

Seu fruto estranho, poema/performance que abriu a mesa de Maria Valéria Rezende e Luaty Beirão, terrivelmente belo e elogiadíssimo, também perdi e só vi depois, agora há pouco, com a insistência do torcicolo que me forçou a não procurar pessoas que eu sabia que não estariam em Paraty: Antonio, Zé, Bibs, Miguel, Eugenia, Rosana. E Vivian.

Perdi Adelaide pela segunda vez por causa daquela outra mesa na Casa do Papel, na qual falamos, Cecilia Arbolave e eu, com mediação de Gustavo Faraon, sobre comercialização e distribuição alternativas de livros e impressos. Além de editora, Cecilia é dona da Banca Tatuí, um sonho de seu marido que sempre dizia que passaria de jornalista a jornaleiro. E eu, no meio de toda minha fala sobre o clube do livro por assinatura que coordeno, não sei exatamente como, acabei fazendo uma defesa dos serviços prestados pelos Correios. Tudo tende à entropia, e ao final daquela noite, atrás de nós na tenda do telão, aguardando Marlon James e Paul Beatty, os dois últimos vencedores do Booker, um grupo de amigos comentava, intrigado, o sumiço de um dente de alho na casa onde se hospedavam.

Outras coisas perdi porque fui escutar Bruna Beber e Omar Salomão falarem poesia na rua. Então não é perder, é ganhar Omar dizendo “não esquecer o amor/ e não deixar o amor me estraçalhar”. E depois — ou antes — ganhar Paloma lendo seu Ensaio de voo que, como o livro de Thiago, começa dentro de um avião. Paloma estava ali no jardim de uma casa de porta amarela em que também ouvi Jarid Arraes se perguntando se ainda tem fôlego contra o racismo. E tem. E Paloma estava, também, em uma das mil conversas sobre remédios pra dormir, na sala da casa desconfortável na qual, ainda, os chuveiros elétricos nos deram choque. Pensei nos eletrochoques dos manicômios pelos quais Lima Barreto passou, e em como a gente sabe tão pouco de tudo, por mais que se programe e estude pra saber. Penso em outra fala do Thiago, sobre os métodos que adotou para escrever: “Eu tinha que estar mais atento na rua, e eu gosto de estar distraído.” Eu gosto, também.

Na semana pós-Flip a quilometragem retoma a rotina: 3,1 km, 4.736 passos em média por dia, exceto quando atravesso o Jardim Botânico para ir ao pilates, que supostamente deveria me reabilitar das dores físicas. Talvez seja hora de voltar para as piscinas, “a bit like a grave covered in water”, a vida começa assim, diz Deborah. No último dia um passeio de barco com pausa para mergulho. Ponho Caetano Veloso pra ecoar pela caixa de som que felizmente lembro de trazer. Somos seis a bordo, Paloma já pegou a estrada pra São Paulo, e escolho o barco com almofadas em forma de coração no qual me aventurei com Lucas no segundo ano em que aquele caderno me acompanhou. E o Caetano pra todo mundo gostar. E o mar, gelado demais pra Manu, que mesmo assim se joga.

37.608 passos em 24 quilômetros, calculo o total, e saio pra comprar óculos de natação depois de conferir que os meus estão quebrados. Os números não parecem tão graves quanto a contratura muscular. Se o tempo fosse a desorganização desse texto, queria voltar pra segunda-feira pré-Flip, quando derreti dentro de uma banheira quente, depois de derreter em beijos que me receberam com chá e massagem nas costas. Mas esse torcicolo. Não ouso tentar.

É a quarta-feira pós-Flip que me reserva novas surpresas, e quando Suzana me acena à saída da aula de pilates, pasme, é para me contar que somos primas em segundo (ou terceiro?) grau. A coincidência de nossos sobrenomes do meio a fez investigar um pouco mais, comentar com a mãe, e descobrimos que o avô materno dela era irmão do meu avô materno. Nossa paleta de cor e nossas sobrancelhas grossas, afinal, têm mais DNA que coincidência ou modismo. Minha mãe ficou pasma. A mãe de Suzana ficou pasma. Suzana e eu ficamos pasmas. Os nossos amigos da casa entrópica ficaram pasmos. Amo as reações pasmadas. Preciso contar pra Paloma. Preciso contar pra todo mundo. E quando todo mundo começa a saber, a pergunta surge: quem vai escrever esse roteiro? Será que dá mesmo um roteiro? Precisamos ir a Paraty levar choques em chuveiros elétricos para descobrir que somos primas.

Vivian costumava gostar dos meus relatos de Flips. Ela dizia que era como estar lá, passeando e assistindo mesas comigo, a sensação que tive ao ouvir Manu contar sobre a mesa de Maria Valéria Rezende. Vivian dizia que dava até pra sentir torcicolo, fosse por osmose ou solidariedade. Gostaria de saber se ela me aprovaria como participante de mesas em casas paralelas, ao lado da Bel. Gostaria de ver seu rosto já descobrindo, mesmo antes de Suzana e de mim, que somos primas, e gostaria de saber o que pensaria sobre esse texto confuso que passa batido por todas as questões relevantes e sérias da Flip, que encheu as ruas de pedras de um público novo, diversificado como os autores e editores escalados para o palco principal. Esse ovo quebrado, oremos, não se desquebra mais.

Quinta-feira o aplicativo do celular não vai saber o quanto nadei e eu terei ouvido o áudio de duas ou três mesas que estavam marcadas em cores berrantes naquela planilha de Excel , além do vídeo em que Diva Guimarães arranca lágrimas de Lázaro de Ramos, e de todos que, como eu, pela primeira vez em anos frequentando a Flip, decidirem usar essa ferramenta de repescagem. Suzana, que conheci na edição de 2016, é minha prima, e essa é a melhor descoberta da edição de 2017, além do fato de que não paro de gostar do livro do Thiago, mesmo que desconfie que, assim como a pasta de dente não volta pro tubo, meu pescoço envergado jamais voltará pro eixo. O livro, você sabe, é o que traz aquele verso, algo que o Bernardo falou antes de entrar no poema.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).