Foz do Iguaçu sem turismo
Um amigo, pelo whatsapp, sugeriu: não deixe de ir até a Argentina comer carne barata. Estou comendo carne barata neste momento, respondi, num rodízio meio tosco, ao lado do hotel. Carne barata e boa, meu caro, escreveu ele, é disso que estou falando.
Outro amigo, também pelo whatsapp: e aí, vai trazer umas muambas do Paraguai? Cara, só atravesso a Ponte da Amizade amarrado no porta-malas de um carro, com um saco preto na cabeça. Ou seja, precisariam me raptar.
Nada contra o Paraguai, mas naquele momento meu único desejo turístico era visitar a Livraria Kunda. Fundada no final dos anos 80, a Kunda é uma das melhores livrarias do país. Porém, para minha tristeza, dessa vez não consegui fazer uma visita ao seu acervo repleto de obras raras, esgotadas, fora de catálogo. À Nathalie, que é a proprietária de origem francesa da loja, devo o estímulo para que eu conhecesse a obra do filósofo Michel Onfray, que venho lendo com parcimonioso entusiasmo.
Há três anos mais ou menos foi a própria Nathalie quem me contou que o escritor Gonçalo Tavares se admirou tanto com a Kunda que acabou gastando uma quantia, não só respeitável, mas alucinável em livros. Saiu daqui carregando dezenas de sacolas, disse a livreira.
O caso é que na semana passada estive nas cidades de Foz do Iguaçu e Cascavel, participando da 35ª Semana Literária do Sesc. Este é um projeto bastante amplo e necessário, eu diria. A Semana Literária promove a itinerância de vários escritores pelo estado, além de shows e peças teatrais para públicos de todas as idades.
O tema da minha fala foi apropriado de uma frase que, em certa ocasião boêmia, o Alexandre França me soprou: "primeiro a gente escreve, depois a gente compõe." O compõe, neste caso, não tem a ver com música, mas com a experiência da criação literária.
Eis, grosso modo, como entendo o ensinamento do França: no processo de escrita artística usamos, num primeiro momento, claro, nossa capacidade técnica e racional. Porém, ao mesmo tempo, percebemos no ato criativo a presença do inconsciente, as pulsões da ordem do desejo e do imponderável, possivelmente de maneira preponderante. Quer dizer, aquilo que é misterioso e que não dominamos muito bem ou, até, nada bem. A elaboração literária, no entanto, é feita de muitas camadas e exigirá do autor um cuidado composicional bastante criterioso, referentes às suas escolhas estéticas. Bom, dá pano para manga este tema e posso voltar a ele com mais calma em outro momento.
A conversa, tanto em Foz (que teve a mediação da poeta Jeane Hanauer) quanto em Cascavel (onde me virei sozinho no palco, com um início de faringite até agora não completamente curada), fluiu de modo solto, intenso e com profundidade.
Na quinta-feira pela manhã, antes de partir para Cascavel, num estúdio improvisado no hotel em que eu estava hospedado, posei para lente de Alex P. Schorsch, que tem se dedicado a registrar uma série de artistas. Schorsch é autor também de um livro, com o qual me presenteou, que contém imagens incríveis das Cataratas e da Floresta Iguaçu. Folheando a obra, lembrei do que dizia Bresson: "a fotografia é a impulsão espontânea de uma atenção visual perpétua, que capta o instante e sua eternidade."
É o que faz Schorsch ao captar plantas, frutas silvestres, aves, felinos de grande porte, macacos, jacarés e tantos outros animais; e insetos, borboletas exuberantes e mais. Além, é claro, das caudalosas águas em queda, gigantescas massas líquidas despencando em abismos com nomes tão assustadores quanto Garganta do Diabo.
O livro também alerta para os males predatórios que a ambição do homem causou para a floresta ao longo dos dois últimos séculos. Nas palavras de Schorsch: “hoje a Floresta Iguaçu é uma ilha verde cercada por um mar de soja.”