Ginástica extática

Thiago Barbalho
ORNITORRINCO site
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5 min readAug 12, 2016

o esporte é uma experiência da ordem do sublime

Diego Hypolito em imagem via jornal O Povo

Dos esportes olímpicos, fascinantes são os de curta duração — judô, ginástica, salto com vara. Neles a adrenalina se concentra e salta num ímpeto, a vida do atleta fica submetida a alguns segundos de vitória ou fracasso. Tantos dias e tantas horas diárias de dedicação, de disciplina, de repetição. O ginasta chega à barra e o que vemos é a manifestação de uma geometria que busca o encaixe perfeito de linhas imaginárias em poucos segundos: o atleta se despersonaliza quase que por inteiro e se abre para o extraordinário.

Como um humano consegue fazer isso? Sabemos que os ginastas, os judocas, todos os atletas têm os mesmos limites de qualquer um dotado de corpo humano. Sabemos que antes de um momento olímpico houve muito treino, muita repetição, muito erro. Mas como eles conseguem? E como eles conseguiram se dedicar tanto? Foi por disposição, incentivo, talento, oportunidade? Nasceram com alguma diferença mutante ou foram bebês como a gente? Como um humano é capaz de se superar? De aguentar dores? Dias ruins? Notícias tristes? Por que não chamamos de loucos esses que dedicam a vida a pular? Por que nos comovemos com a superação de um ginasta se ela não se dá no nosso corpo? É pelo que cada humano carrega de igual que, ao ver um atleta superar limites físicos, a gente se emociona? Como se ali também fôssemos juntos um pouco mais à frente? Como se ali houvesse o seguinte recado: somos sempre capazes de mais?

Ao mesmo tempo em que o ginasta se despersonaliza e deixa surgir uma equação de ângulos, linhas, cinética e termodinâmica de uma beleza que só a geometria poderia ter, se o ginasta é notável, a sua personalidade vai aparecer de um jeito ou de outro, mínimo e definitivo, de modo a se somar à sua extraordinária realização de um jeito gracioso, seja com um movimento que ele criou, seja pelo seu cabelo esquisito, seja por sua seriedade ao ficar em primeiro lugar, seja sua altura, sua baixeza, seu jeito incólume no meio do silêncio da plateia, sua história de vida, suas passagens por fracassos, suas experiências de racismo. É que no gênio a peculiaridade se transforma em cereja de bolo. As singularidades se transformam em recheio.

os esportes de quadra, uma vez que duram muitos minutos, diluem a emoção. É nessas partidas que o seu amigo pode ir até a cozinha buscar uma cerveja, você responde a uma mensagem sem perder nada de importante no jogo. Nas maratonas também. Uma manhã inteira de maratona. Eu me sinto constrangido de não dar tanta atenção ao que, para o sujeito que está correndo, foi uma espera quase sem fim até este dia, e que ele está dando tudo de si o tempo inteiro. Mas aí existe o tempo. Fórmula 1 é a mesma coisa. Muito tempo até que alguma coisa definitiva se dê. Acelera, diminui, pit stop. Desculpe se a mim só interessa o extremo. Goste de futebol quem gostar. Acho que isso tem mais a ver com a personalidade do espectador do que com o valor do esporte. Uns se sentem mais atraídos pelos picos de adrenalina, pelo êxtase, pelo descontrole que eleva um instante na ginástica à experiência mística do deslimite: o arrepio breve e intenso, sem pausa, o corpo que se mexe de nervoso: a emoção que não cabe em si e manifesta a sua ânsia de transcendência.

Os que preferem esportes longos como o futebol gostam de sua maior abertura ao inesperado, ao movimento de improviso de um corpo contra outro, à bola que desliza e é retomada ou perdida mais à frente. Ou a maratona, com o competidor que vinha lá atrás ultrapassando o que se mantinha em primeiro. Entendo. Mas sou dos que não resistem a uma adrenalina no talo, sou dos que talvez padeçam de uma sorte de ansiedade ou déficit de atenção — para os quais alguma coisa só pode ser fascinante se incrivelmente cativante e sem muitos intervalos à pasmaceira. De outro modo já trocamos de canal, já olhamos pra outra coisa, já nos apaixonamos por alguém, já babamos, já sentimos fome.

Arrisco imaginar que os praticantes de esportes brevíssimos, como a ginástica e o judô, se gostam de ler também são mais dados à leitura de poesia que à leitura de prosa. Ou talvez esses atletas — justamente por conviverem com o extremo — prefiram, como contraponto e descanso, uma leitura calma, a prosa serena da crônica como intervalo de suas rotinas estafantes? Ou um romance largado no cochilo? Fato é que a poesia exige a concentração solitária parecida com a do salto sobre o cavalo (um poema notável é um salto?), explosão que acontece em pouco espaço de tempo com minúsculos instantes de paz tal qual uma competição de argolas — pequenos respiros suspensos em busca do mergulho que virá no segundo a seguir, no verso seguinte. Já a prosa exige um andar por longo intervalo, às vezes mais contínuo. Um conto é uma partida de basquete. Uma novela é uma disputa de tênis. Um romance é uma competição de críquete.

Mas a ginástica — a ginástica é o humano na sua busca máxima pela transcendência. A ginástica é uma pessoa abrir mão de si até chegar ao máximo — a vitória — , e então retornar a si e abraçar tudo como o centro das atenções. A ginástica não tem finalidade. Tudo ali é o corpo em função de si mesmo. Afinal, não passamos de corpos. E na ginástica artística o corpo, curvado contra si, busca somente atingir uma beleza para quem assiste. Mais nada. Uma ginasta profissional não vive como se quisesse fazer outra coisa que não ser muito boa ginasta. O jogador de críquete também? Talvez. Ser atleta é um gesto de bondade e ambição. É triste perder, mas as ginastas topam o risco. Os ginastas querem servir a nós como campo de aparição do belo, do maior, do mistério e da inutilidade deleitosa da beleza. Os atletas de ginástica artística me lembram tulipas, que têm sua excelência no fato de que existem para serem lindas, e as cores das roupas dos competidores dizem a mesma beleza que as cores nas pétalas.

Uma ginasta se movimenta sobre uma barra suspensa. Ela anda, salta, levanta os braços, ergue uma perna e a empurra suspensa ao redor de si num círculo inteiro. Ela faz isso sem se desequilibrar. Não cai, não enverga. O círculo perfeito. E todo mundo que assiste fica boquiaberto, fica pleno de espetáculo. Pelo menos por um segundo. Terminada a competição, que venham outras maravilhas depois.

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Thiago Barbalho
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“Um homem bom“ (Iluminuras, 2017), “Thiago Barbalho vai para o fundo do poço” (Edith, 2012) e “Doritos” (Vira-Lata, 2013). thiagobarbalho.com