Grandes Finais da Poesia
Como se fosse saber a hora de parar, sair da melhor maneira, ou a única. O poema pode ser como uma sinfonia, ter finais apoteóticos, ou mesmo operísticos. As últimas palavras de um poema podem fazer com que você nunca o esqueça. Saber a hora de sair do poema é um trabalho raro, de engenharia difícil. Livrar-se da coisa ou esculpir a forma perfeita antes de gritar “Parla!”?
Lembrando Paul Valéry, “Um poema é uma duração, na qual, leitor, eu respiro uma lei que foi preparada; eu dou meu sopro e as máquinas de minha voz, ou somente seu poder, que se concilia com o silêncio” e nesse silêncio, a música, seja ela qual for.
Em Augusto dos Anjos vemos finais que se parecem com a reticência da reverberação de um imenso prato chinês após o golpe:
Se alguém ainda causa pena a tua chaga;
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
ou
E logo a lágrima em meus olhos cai.
Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!
ou ainda
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem…
E não pude domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
Naturalmente o poema rimado, enquadrado nas formas tradicionais do fazer poético, tem uma óbvia inclinação ao fechamento musical, rítmico, que celebra a proeza ao poeta quando então encerra o poema com tal escultura sonora. Vinicius de Moraes, por exemplo:
Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.
Mas do mesmo poeta temos:
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
ou
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.
e
Que devemos nos encontrar, e para tanto
É preciso que estejamos íntegros, e acontece
Que os perigos são máximos, e o amor de repente, de tão grande
Tornou tudo frágil, extremamente, extremamente frágil.
Drummond é um caso especial, possui entradas e saídas magistrais, um Mozart. Aqui, depois do árido caminho que desenha, termina a Máquina como o apito final de uma imensa fábrica:
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.
ou os versos finais do primeiro poema do primeiro livro;
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
ou
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
e ainda
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
E o exercício é vasto. Não que um poema que não tenha bons inícios e bons finais sejam poemas menores, muito pelo contrário, mas há os que se apresentam na orgia da leitura como animais robustos a que os outros animais respeitam, ou temem. Como no caso de João Cabral, que muitas vezes “trai” a expectativa do leitor mas que dentro de sua proposição dá um outro tom à relação com o poema:
Sentados em desordem aparente,
ei-los a engolir regularmente seus relógios
enquanto o hierofante armado cavaleiro
movia inutilmente seu único braço.
ou
É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.
e também
(O inferno foi fogo de vista,
ou de palha, queimou as saias:
deixou nua a perna da cana,
despiu-a, mas sem deflorá-la.)
Muitas vezes esses registros são acompanhados do suporte da voz do poeta, a voz literal, que sai da boca, na leitura falada, onde tudo fica mais evidente. Raúl Zurita é um deles, que tanto no papel quanto na fala, a robustez do poema potência se dá de maneira violenta:
Somos todos los pastos de
este mundo les contestan largándose los ríos
que se aman … abiertos … tirados … rompiéndose
ou o magistral (no recorte que o próprio poeta faz em suas leituras)
Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.
Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.
Murió mi chica, murió mi chico, desaparecieron todos.
Desiertos de amor.
Por aí vai sem fim. E ainda nessa linha, temos Pedro Rocha:
Esse poema Russo duro ateu
Morreu num submarino de guerra enguiçado no fundo.
Esse poema sem saída não existe sem rua
ou
a gente ainda não sabe
se é isso mesmo
se a vida segue sem você
O Tecelão Segue
E naturalmente Ericson Pires:
gritar uma super nova a cada minuto
- o amor brilha –
ou
A cidade são cidades impossível retê-las em um só punhado
Não moro mais na cidade
Quero o agora
nos jardim dos instantes
Não se pode afirmar que é algo que se busca no poema. Dar o ponto final é sempre duro para qualquer situação. Alguns creem que é o poema que determina o fim, assim como a sala de ensaio, a cena, o corte.
Há uma triangulação que pode ser feita no que diz respeito aos finais que rompem, que gritam e calam, que deixam eco. Três finais muito interessantes e, por que não, podem dialogar nesse lugar. O final de The Love Song of J. Alfred Prufrock, do Eliot, um poema; O final de L’Étranger, do Camus, uma prosa; e o final da Nona Sinfonia, do Beethoven, música.
Talvez porque o caminho feito durante a obra é tão repleto de circunstâncias extremas que causam variadas sensações no ouvinte/leitor, ou simplesmente naquele que se abre, que seus finais não poderiam ser diferentes, duros, fortes, na ascendente, para o alto e avante:
I have seen them riding seaward on the waves
Combing the white hair of the waves blown back
When the wind blows the water white and black.
We have lingered in the chambers of the sea
By sea-girls wreathed with seaweed red and brown
Till human voices wake us, and we drown.
…
Comme si cette grande colère m’avait purgé du mal, vidé d’espoir, devant cette nuit chargée de signes et d’étoiles, je m’ouvrais pour la première fois à la tendre indifférence du monde. De l’éprouver si pareil à moi, si fraternel enfin, j’ai senti que j’avais été heureux, et que je l’étais encore. Pour que tout soit consommé, pour que je me sente moins seul, il me restait à souhaiter qu’il y ait beaucoup de spectateurs le jour de mon exécution et qu’ils m’accueillent avec des cris de haine.
Somando isso ao soco sonoro do final da Nona Sinfonia, como se estas obras, assim como as outras citadas (e muitas mais) fizessem parte deste nicho de existências que se agarram nas almas e no mundo dos que vivem. Ainda tem, Waly “é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão e na sequência de diferentes naipes quem fala de mim tem paixão”; Gullar “E cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará, quando for tempo”; Pessoa “Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu”; Mahler, Brahms, Mozart ouWagner, que tanto no poema, na prosa, quanto na música e seja lá qual for a linguagem, fazem com que suas obras transcendam ao que elas se propõem e que jamais saberemos o efeito que causarão ao longo do tempo em que esse planeta existir e essas coisas todas ainda sejam importantes e palpáveis para os que por aqui passam e deixam seus rastros.
Holy forgiveness! mercy! charity! faith! Holy! Ours! bodies! suffering! magnanimity! Holy the supernatural extra brilliant intelligent kindness of the soul!”