Há mais de uma década surgia o ORNITORRINCO

À partir de 2011 um bando de artistas circulou pelas ruas do Rio de Janeiro com olhos, ouvidos e corações atentos, captando ideias para crônicas. Seus textos possuíam observações únicas do que era ser jovem e estar vivo naqueles tempos.

ORNITORRINCO
ORNITORRINCO site
9 min readAug 29, 2023

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O grupo formado por atores, fotógrafos, poetas, artistas plásticos, músicos, compositores, editores e dramaturgos, produzia uma publicação chamada ORNITORRINCO. Assim, tudo maiúsculo.

“Nada parecia fazer tanto sentido como o nome desse mamífero semi-aquático ovíparo com bico de pato” explica Gabriel Pardal, idealizador do projeto. “Justamente porque estava se formando ali um grupo (?), coletivo (?), turma (?) de escritores (?), cronistas (?), artistas (?), um bando de gente envolvida com produção artística de modo geral e, que, assim como eu, tinha uma relação especial com a criação textual.”

Estamos falando de uma fase pré-histórica das redes sociais. Na época não havia YouTubers, o Instagram estava começando a aparecer, a rede social onde todo mundo estava era o Facebook.

Pardal então chamou amigos e conhecidos para criar um zine que seria enviado pelos correios. “Minha ideia era muito simples. Eu sabia que eles escreviam e queria que eles escrevessem mais e que as pessoas os lessem. A lógica: eu gosto do que eles escrevem e quero mostrar para vocês.”

Logo criada por Lucas de Ouro

Cada colunista tinha o seu próprio olhar. A maioria fazia mais de uma coisa: cantora-atriz, fotógrafo-dj, músico-poeta, ator-compositor, etc, e todos tinham em comum o fato de gostarem de escrever e estarem dispostos a contar histórias sobre o que lhes inspiravam.

O projeto que começou em 2011 teve seu fim em meados de 2018. Durante sete anos de existência, os textos foram assinados por (em ordem alfabética): Augusto Guimaraens, Bruna Beber, Camilo Lobo, Clara Cavour, Clara Meirelles, Danilo Mataveli, Domingos Guimaraens, Emanuel Aragão, Franco Fanti, Gabriel Camões, Gabriel Pardal, Julia Wähmann , Júlio Fisherman, Keli Freitas, Letícia Novaes, Lucas Gutierrez, Luiz Felipe Leprevost, Mariano Marovatto, Maria Rezende, Paulliny Tort, Pedro Lago, Ramon Nunes Mello, Thiago Barbalho, Vitor Paiva.

Um mamífero semiaquático que põe ovos

No começo, o ORNITORRINCO era um zine impresso enviado pelos correios para uma seleta lista de amigos e interessados. Já na segunda edição, a lista de assinantes aumentou com pessoas de outros estados e até de fora do país. Por isso precisou se transformar numa versão digital por e-mail para baratear os custos, já que os autores não cobravam nada pelo que escreviam. Esse formato se consolidou por anos até que o número de autores aumentou e a publicação se tornou num blog.

Não demorou muito, o projeto começou a produzir eventos. Fizeram reuniões abertas com leitores, tocaram como DJs em festas, gravaram podcast (antes dos podcasts existirem), entrevistaram personalidades, viajaram juntos e lançaram um livro.

As histórias foram contadas por muitas vozes. Mas também foram registradas em imagens. Camilo Lobo era o fotógrafo oficial, sempre acompanhando o grupo em todas as empreitadas, registrando cada momento. “Ele era mais um integrante. Com essas fotos, Camilo escrevia suas crônicas”, conta Pardal, que conheceu Camilo na faculdade de comunicação em Salvador e chegaram a morar juntos no Rio.

Para comemorar os mais de dez anos do ORNITORRINCO vamos revelar aqui algumas fotos nunca antes mostradas, acompanhadas pelos comentários do Gabriel Pardal:

Era uma vez…

Atenção pois vocês vão ver pessoas muito jovens agora.

Assim começava o ORNITORRINCO. Em abril de 2011, rolou um encontro na casa do Emanuel Aragão, no Jardim Botânico. A gente se juntou pra imprimir e empacotar a primeira edição do zine, que foi enviada para uma lista de 76 pessoas pelo correio. Confesso que já neste primeiro dia tivemos noção de que seria quase impossível fazer isso nas outras edições, afinal, tinha que escrever o endereço de cada um. Imagina.

Emanuel Aragão, Gabriel Camões, Júlio Fisherman
Julio Fisherman, Gabriel Camões e Gabriel Pardal

A lista de assinantes foi crescendo e acabou ficando caro pra gente imprimir tudo e enviar. Daí passamos a editar no formato de newsletter enviada por e-mail. Isso possibilitou também aumentarmos o número de colunistas. Na época as redes sociais não eram esse shopping center de hoje, então não divulgávamos a assinatura. As pessoas ficavam sabendo no boca a boca ou porque alguém compartilhava com elas. Foi muito doido como pouco a pouco pessoas encontravam a gente nos bares e diziam que eram assinantes.

Em uma das primeiras reuniões na extinta livraria Ponte de Tábuas, no Jardim Botânico. Na foto: Maria Rezende, Emanuel Aragão, Franco Fanti, Gabriel Pardal e Ramon Nunes Mello. Fora da foto, na mesa vizinha, estava o documentarista Eduardo Coutinho, frequentador do local.
Primeira foto oficial do coletivo (foto: Camilo Lobo)
Foto para matéria do jornal O Globo em2013 (foto Camilo Lobo)

Naquela época a coisa ficava importante quando aparecia no jornal. E tivemos esse momento de glória. Uma matéria sobre a gente foi publicada na revista de cultura do jornal O Globo. Camilo fez essas fotos em uma finada livraria do Jardim Botânico.

Foto de divulgação (foto: Camilo Lobo)
Foto de divulgação (foto: Camilo Lobo)

Quem vê essas fotos acha que a gente era assim. Na verdade a gente era mais assim:

Em pé: Camilo Lobo, Keli Freitas, Vitor Paiva, Gabriel Pardal e Júlio Fisherman. Abaixados: Franco Fanti, Letícia Novaes e Maria Rezende.

O bar era a sala de reunião

É certo que todo grupo tem que ter seu bar. O nosso era o Alfabar, em Botafogo. Quando chegamos lá, era apenas um bar com coroas bebendo em dia de jogo. Aos poucos o negócio foi enchendo. Tinha a Comuna também, outro bar que ficava logo em frente. Nós estávamos sempre lá. Toda semana. Talvez todos os dias. Fazíamos reuniões, conversávamos sobre as coisas, trocávamos ideias e referências. O ORNITORRINCO não seria o mesmo se não fossem as cervejas, os sanduíches de linguiça e o hambuguer com wasabi.

Gabriel Pardal, Domingos Guimaraens, Vitor Paiva e Camilo Lobo no Alfabar
Mariano Marovatto, Domingos Guimaraens, Gabriel Pardal e Vitor Paiva
Domingos Guimaraens e Camilo Lobo visivelmente deturpados
Vitor Paiva e Mariano Marovatto listando as melhores bandas do mês

Um evento pra chamar de nosso

A Ana Rios, atriz e produtora, nos convidou para participar da programação do Teatro Ipanema. Juntos tivemos a ideia de fazermos reuniões ao vivo com leitores e interessados. Demos o nome de República Ornitorrinco. Eu organizava as pautas que seriam discutidas e todo mundo dava sua opinião com aquela irreverência característica. Tudo isso aditiviado pelo álcool. O formato foi tão maneiro que acabamos fazendo em outros lugares, principalmente na Comuna.

Ramon Nunes Mello, Letícia Novaes, Keli Freitas e Domingos Guimaraens se preparam para o evento (todas as fotos: Camilo Lobo)
Domingos Guimaraens, Vitor Paiva e Júlio Fisherman
Gabriel Pardal com o ornitorrinco de pelúcia, mascote
Maria Rezende, Franco Fanti e Vitor Paiva
Ana Rios ajeita o figurino do Domingos
Os leitores se reuniam aos colunistas para debater assuntos do momento
Domingos sempre caprichava na fantasia
Letícia Novaes, Domingos Guimaraens e Mariano Marovatto

Na época das ocupações nas escolas municipais, fomos convidados pelo grêmio estudantil de uma escola em Copacabana para fazer um República Ornitorrinco com os alunos. Conversamos com os estudantes e aprendemos um monte sobre organização e futuro.

Lucas Gutierrez (no cantinho), Vitor Paiva, Julia Wähmann e Mariano Marovatto
Galera massa reunida. Colunistas: Julia Wähmann, Gabriel Pardal, Vitor Paiva, Mariano Marovatto e Lucas Gutierrez

Conversando com outras pessoas

Era um desejo antigo do Vitor realizar entrevistas com pessoas que admirávamos. A gente queria fazer aquelas entrevistas longas tipo do Pasquim, deixando o entrevistado desenvolver bastante as ideias. Foi uma das coisas mais massa de fazer. Lembro muito da entrevista que fizemos com o Daniel Cohn-Bendit, na praia de Ipanema.

Vitor Paiva, Júlio Fisherman, Domingos Guimaraens, Gabriel Pardal entrevistando Daniel Cohn-Bendit (foto: Camilo Lobo)
Domingos Guimaraens, Franco Fanti e Gabriel Pardal entrevistaram Gregório Duvivier (foto: Camilo Lobo)
Vitor Paiva, Júlio Fisherman e Gabriel Pardal entrevistaram Viviane Mosé (foto: Camilo Lobo)
Domingos Guimaraens, Gabriel Pardal e Vitor Paiva entrevistaram Rafucko (foto: Camilo Lobo)
Domingos Guimaraens, Vitor Paiva e Gabriel Pardal entrevistaram Michel Melamed (foto: Camilo Lobo)

Habemus livro

O livro surgiu de um convite do Fernando Ramos, fundador da Festipoa — Festa Literária de Porto Alegre. Um cara muito antenado, ficou sabendo do que estávamos fazendo no Rio e me mandou e-mail propondo lançarmos um livro lá. Então fizemos essa edição correndo. Viajamos juntos e levamos nossas ondas pro frio gaúcho.

Em pé: Franco Fanti, Domingos Guimaraens, Letícia Novaes, Ramon Mello, Vitor Paiva. Sentados: Maria Rezende, Gabriel Pardal e Keli Freitas.
Abraço coletivo no Lucas Vasconcellos
Franco Fanti, Domingos Guimaraens, Ramon Nunes Mello e Letícia Novaes congelados no frio portoalegrense

Fizemos um República ORNITORRINCO em Porto Alegre também:

Gabriel Pardal oferecendo melzinho com álcool para o público presente

Estávamos sempre juntos

A parada é que éramos amigos. E estávamos todos no mesmo barco tentando entender o que estávamos fazendo, como fazer melhor e como realizar nossas ideias. Isso nos mantinha juntos e unidos. Então andávamos por aí em festas, cafés, teatros, bares e fazendo o que todo mundo fazia: beber e conversar.

Mais uma serenata na casa do Vitor Paiva
No dia em que cada um escolheu sua capa de disco preferida. Júlio, Domingos, Vitor… Pardal foi do contra.
Domingos e Vitor bebem, é uma frase que se repetiu
Mariano e Letícia com a mão na cabeça, essa é a legenda
Quando a Maria preparou um jantar pra geral
Namore alguém que olha pra você como Pardal olha pra Letícia
Contando quantas garrafas de vinho são necessárias para escrever um artigo
Atrás: Letícia Novaes, Maria Rezende, Keli Freitas, Domingos Guimaraens e Danilo Matavelli. Na frente: Mariano Marovatto, Gabriel Pardal e Vitor Paiva. Todo poder à praia

Escrever é uma atividade solitária por natureza. Minha experiência no teatro, no cinema e na música me fez puxar essa criação coletiva para o processo de escrita. Acho que com o ORNITORRINCO conseguimos fazer isso. Sentíamos mesmo que estávamos escrevendo juntos. Isso mudava tudo. Obrigado a todos por esses anos de muitas trocas, aprendizados e aventuras. Sonhar com vocês foi um privilégio. Amo vocês.

Uma década depois

O ORNITORRINCO tinha como tagline a frase “Histórias, ideias e pensamentos contemporâneos” e se propunha a compartilhar opiniões plurais, pulsando criatividade. Foi o que aconteceu durante os sete anos em que manteve suas atividades.

A produção de 2011 até 2013 foi publicada em livro, que hoje se encontra esgotado (saiba mais). Já os textos escritos à partir de 2014 podem ser lidos aqui no arquivo.

O projeto acabou em agosto de 2018, ou seja, existiu durante uma época bastante significativa, produzindo reflexões sobre os principais acontecimentos nacionais (manifestações de 2013, Copa de 2014, Olimpíadas de 2016, o golpe de 2016), sendo um canal de opiniões divergentes feito por uma equipe jovem e atenta. Os integrantes seguem trabalhando em seus projetos artísticos e podem ser encontrados com uma simples pesquisa pelos seus nomes nas redes sociais. E o mais importante, continuam se encontrando em festas, bares, jantares, shows, estréias de peças e, agora, em parquinhos infantis ou na frente das escolas, buscando seus filhos.

Histórias, ideias e pensamentos contemporâneos. Não era um plano simples. Mas foi muito bem executado.

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