História do Brasil: Edição Atualizada

Tomamos consciência da desigualdade social, mas seguimos amarrados a ela

Thiago Barbalho
ORNITORRINCO site
7 min readApr 5, 2016

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Bairro do Jaguaré, São Paulo. Foto: Thiago Barbalho

As vozes oprimidas pela desigualdade no Brasil sofrem censura, e nós estamos acostumados com isso. Quem acha que todo mundo já sabe disso e que nada vai mudar é porque naturalizou a opressão, e confirma a tese de que estamos acostumados. O que é bem triste. Afinal, a desigualdade extrema não é algo que já devia ter sido resolvido? Devo dizer que não concordo com essa naturalização, não me acostumei com ela até hoje, e não pretendo me acostumar. Na verdade eu acho que ainda precisamos espremer mais essa chaga publicamente até fazê-la explodir e incomodar ao ponto de ficar inescapável resolvê-la. Ainda não fomos longe o suficiente nisso e precisamos ser ainda mais fortes, corajosos e descarados.

As vozes oprimidas pela desigualdade nacional sofrem censura de várias maneiras. Cito um exemplo: os veículos de comunicação não têm entre seus formadores de opinião pessoas que vivem do lado de baixo da opressão social e que mostrem, a partir das suas próprias experiências, o que é sofrer com a desigualdade no Brasil.

Mas por que não há, nos jornais, nas revistas, na televisão, formadores de opinião que representem as classes oprimidas de dentro delas mesmas?

Resposta: Porque não interessa aos donos desses lugares que gente oprimida pela desigualdade reflita sobre sua situação e se dê conta de que pode virar o jogo e ter seu próprio ponto de vista.

Enquanto isso, os mais poderosos espalham a visão brega e ostentadora das coisas, como sempre fizeram, deixando que se noticie a pobreza por compaixão enquanto as pessoas que convivem com a privação continuam impelidas a aceitar essa versão do mundo ou a lutarem do lado de fora desses veículos, com as indevidas limitações. Quando acontece do lado oprimido conseguir gritar pela urgência de seus problemas, então a repressão vem na medida do poder de influência. Quem tem mais dinheiro consegue armas mais potentes, e assim segue a desigualdade. Veja, por exemplo, os casos de ativistas indígenas assassinados ou jurados de morte, a blogueira feminista Lola Aronovich, a punição amena (quando há) de policiais assassinos, os intelectuais que já foram demitidos de mídias por falarem verdades incômodas. Nesses casos, a única proteção possível para quem enfrenta a opressão é a aderência do povo à mesma causa. É aí que o ativismo ganha razão e se justifica, pois só a massificação de uma causa pode dar proteção a gente corajosa e verdadeira mas sem recursos além da própria voz; só isso pode fazer alcançar soluções para a desigualdade que se perpetua.

Para enfrentar a opressão é preciso falar verdades políticas abertamente, e isso é de fato perigoso, uma vez que representa ameaça à confortável rotina de quem está sentado em trono de ouro — cabe aqui perguntar em que contexto histórico esse trono foi construído e ocupado. Mas, como qualquer povo na história humana, nós, os insatisfeitos e oprimidos com o status quo, também precisamos de gente corajosa que saia desses campos minados e grite por direitos e desmascare o delírio do “povo da mercadoria” (para usar a expressão do xamã Davi Kopenawa).

Além disso, a opressão social histórica e cruel sobre a qual o Brasil se formou também impõe valores. Quem determina o que é belo, o que é relevante, o que é de “bom gosto”, o que é correto não somos nós, são os ricos empresários donos do mercado de comunicação e cultura. Uma espécie de controle dissimulado porque a intenção é fazer com que seus gostos se propaguem como se se tratassem de uma preferência de cada cidadão. Nada mais delirante do que se supor livre num mundo regido pela ganância, pelo domínio econômico de uns poucos sobre vários, pela propaganda — melhor dizendo, em um mundo regido pelo dinheiro.

Por que não impera o valor de beleza que venha da cultura indígena, ou da cultura das favelas, ou dos subúrbios, ou do Nordeste, ou do Norte? Ou pelo menos isto: por que não são vários os parâmetros de valor? Será que os meus critérios vêm de onde eu nasci e me criei, ou vêm da mesma fonte cultural que impõe aqui tudo o que acha mais importante e nos faz um povo distante da nossa própria terra, esquecidos que somos de nós mesmos, de nossas origens, desprezando nossas raízes, nosso lugar — e nos faz provincianos para sempre?

Jardim Europa, São Paulo. Foto: Thiago Barbalho

Outro dia um amigo francês que mora em São Paulo me contou que fica impressionado com o fato de que aqui as pessoas com mais dinheiro esbanjam luxo e reclamam dos serviços enquanto fazem relatos fascinantes sobre viagens ao exterior, deslumbradas com o que consideram ser o padrão europeu. Os cidadãos pobres reclamam da rotina sufocante de trabalho e do preço a pagar caso decidam fazer uma faculdade enquanto os burgueses (desculpem a falta de uma palavra melhor) ocupam as vagas das universidades públicas e reclamam dos serviços não tão impecáveis quanto acham que merecem. Pois é, cada um com os seus problemas.

Meu amigo francês disse também que ficou assustado com a capacidade que temos para nos habituarmos (ele também) a conviver com uma classe rica ostensiva que faz questão de se afastar da pobreza em vez de tratá-la.

Só eu considero um atestado de ignorância não enfrentar o fato de que a miséria é ruim para todos? Quem tem dinheiro e empurra a miséria para longe não percebe que cria para si mesmo um estado de medo? E ainda assim, supostamente, deveríamos deixar eles nos digam o que é de “bom gosto”, de “bom tom”?

Os ostentadores do poder preferem se distrair da verdade social incômoda, expulsando moradores de rua de seus bairros floridos cheios de design e não abrindo mão de seus salários discrepantes em relação aos de seus funcionários enquanto mantêm o medo e a paranoia que sentem como um persistente desconforto tratável com ansiolíticos. Mas se a verdade social incômoda da qual tentam fugir é formatada em canções de protesto ou qualquer tipo agradável de arte, aí pode ser que eles a consumam. É verdade que essa contracorrente artística é louvável. O poder penetrador da arte é incontestável — mas insuficiente. É preciso, paralelamente, desviar os problemas do contexto da apreciação artística e mandar aos quatro cantos a verdade na cara, e exigir que a injustiça pare. É preciso cobrar.

Eu me pergunto por que não podemos considerar que é agora a hora de fazer com que os opressores vivos que perpetuam essa história decrépita sejam confrontados com verdades incômodas até ficarem encurralados, constrangidos. Digo isto pelo seguinte: sou de uma geração que cresceu e se nutriu nas vias libertárias da internet, pela qual tivemos acesso livre a tudo o que até então era exclusivo de quem tinha dinheiro e era “bem formado”. Tivemos finalmente acesso ao direito de opinião. A internet ajudou aos cidadãos de fora do grupo privilegiado a descobrir uma infinidade de escritores, artistas, pensadores, críticos sociais e músicos sem pagar um tostão por isso, e a descobrir o quanto tivemos, e temos, que pagar pelo arranjo social cruel que já estava dado quando nascemos. Tivemos esse privilégio de crescermos com conhecimento e cultura dentro de nossas casas ou na lanhouse da esquina, numa época em que a internet ainda estava resguardada da praga de propaganda. Nós, que amadurecemos assim, somos os adultos da vez e vivemos o ápice de nossas consciências, somos animais capazes de nortear a história. Mas parece que a maior parte da minha geração está mais empolgada alimentando a zoeira e o cinismo virtual, empurrando os problemas para a geração de seus filhos.

Mas espere, vamos sonhar aqui mais um pouco, só por uns minutos: poderíamos agora encarar que estamos esgotados dessa palhaçada da imposição de valores. Poderíamos, se quiséssemos e se nos organizássemos, instaurar outra ordem pelo desprezo do que os homens sentados em tronos chamam de ordem quando mantêm a realidade do enriquecimento às custas da miséria alheia. Afinal, antes da ordem, o que nortearia um mundo sensato não seria o senso de justiça e de honestidade?

Acontece que o mundo dos homens não é sensato. O mundo dos homens é contraditório. Eu sei. Mas eu também sei que foi graças à coragem de lutadores que hoje temos um mínimo de conforto e um mínimo de direitos garantidos em comparação com o nosso passado.

Essa questão continua em aberto. E continuará não sei até quando. Impossível é ficar quieto e calado diante de tanto absurdo continuado.

Quero encerrar este texto oferecendo as seguintes perguntas:

A quem interessaria nos fornecer um conhecimento que nos aproximaria mais da honestidade e da independência do que da ordem dada? Se todos nós nos déssemos conta de que podemos fazer o que quisermos das nossas mentes, das nossas ideologias, das nossas cidades, sem seguirmos os valores que nos convencem a seguir (valores de beleza, de qualidade, de mérito, de bom gosto, de discriminação, de proibição, de sofisticação, de empenho, de sucesso, de carreira, de respeito), quem ia querer a sociedade como ela está? Quem ia engolir milhares de sapos e dar o melhor de si a uma empresa ou a uma instituição como se isso fosse natural e livre? Conscientes de nossos direitos e de nosso potencial para modificar as coisas e marcar a história como fazem todas as gerações no seu ápice, firmes de que o separatismo econômico precisa de uma solução imediata assim como nós precisamos melhorar as nossas vidas, desprezando os valores e os sonhos ditados por outros, será que continuaríamos reproduzindo a mecânica de realização pessoal pelo autossacrifício do regime trabalhista em vigor? E por fim: quem, pensando e agindo com essa crítica, seria capaz de aceitar receber a própria alegria em migalhas? Quem ia abrir mão da própria realização em nome da aceitação de uma realidade cruel, reacionária, ignorante, burra, sem tempo livre?

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Thiago Barbalho
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“Um homem bom“ (Iluminuras, 2017), “Thiago Barbalho vai para o fundo do poço” (Edith, 2012) e “Doritos” (Vira-Lata, 2013). thiagobarbalho.com