A separação e o cinema dos herdeiros do neorrealismo italiano

Júlio Fisherman
ORNITORRINCO site
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3 min readAug 20, 2018
Foto durante as filmagens de “A separação” de Asghar Farhadi

O filme iraniano “A separação” é uma obra prima. Teria alcançado uma projeção internacional diversas vezes maior se fosse uma produção com todo o aparato promocional típico de Hollywood. Ainda assim, conhecerá com o tempo a consagração definitiva que merecidamente lhe pertence. É um dos melhores filmes produzidos nos últimos 20 anos e já está credenciado a ocupar um lugar de referência e estima no futuro.

Escrito e dirigido por Asghar Farhadi, “A separação” é um drama sobre o afastamento de um casal cuja a guarda da filha adolescente se encontra em litígio. Um processo bastante trivial e, no entanto, há muito tempo não se via uma história que parte de um conflito tão corriqueiro ser tão bem desenvolvida e lapidada num enredo magnificamente costurado.

Trata-se de um roteiro original de excelência inquestionável onde, no desenrolar da trama eixo, os microconflitos são variados, convergentes, absorventes e devidamente carregados do suspense e da tensão dramática que promovem o fascínio do cinema. Este atributo, aliás, foi devidamente assinalado pelo escritor estadunidense F. Scott Fitzgerald num célebre diálogo de seu romance “O último magnata” — fragmento que não foi ignorado na adaptação de Harold Pinter para o filme homônimo dirigido por Elia Kazan e protagonizado por Robert De Niro. Farhadi conseguiu não apenas este soberbo resultado como o fez dando corpo e alma aos seu personagens: todos imersos numa humanidade muito além do maniqueísmo barato de vilões e heróis.

Os méritos do roteiro poderiam ser estragados se Farhadi não tivesse provado também ser um exímio diretor, com talento para traduzir para a “ação” toda a visceralidade e as sutilezas que teceu primeiro em linhas imaginadas. Ele conseguiu talhar o tempo certo para os movimentos e diálogos, sem pressa ou languidez, delineando um ritmo típico dos ciclos da natureza, que quando menos percebemos, e sem sermos mais os mesmos, já estamos de volta ao mesmo ponto de partida.

Mas a exuberância e o brilho radiante de “A separação” não se realizariam sem a entrega intensa e entranhada do elenco. Atores e atrizes estão imersos de modo profundo e despojado no drama e caráter dos personagens. Para arrematar, a obra alcança o estado da arte sem o uso do que já se tornou, na grande maioria das produções, uma muleta para comover o público: o uso de trilha sonora. O filme não conta com música para fazer desabrochar este ou aquele estado de espírito, exige a intimidade do ‘silêncio’ em seu processo de reconhecimento e identificação com os afetos representados.

“A separação” (2011) é um ápice nas realizações do cinema iraniano atual, sem deixar de ser uma produção completamente encravada numa já robusta tradição estética cinematográfica que ali vem se desenvolvendo e pode ser assumida como herdeira do neorrealismo italiano.

Cena de “No tempo de embebedar cavalos” de Bahman Ghobadi

Se é verdade que foi uma produção chinesa — Bicicletas de Pequim” (2001) de Xiaoshuai Wang — que realizou uma releitura de “Ladrões de Bicicleta” (1948) de Vittorio De Sica, foi “No tempo de embebedar cavalos” (2000) do diretor curdo/iraniano Bahman Ghobadi que ofereceu o melhor tributo a este clássico italiano ao narrar uma história protagonizada por crianças de pungente e sublime realismo.

Há ainda muitas outras produções iranianas de alta qualidade como o posterior “O apartamento” (2016) do mesmo Asghar Farhadi, “Filhos do Paraíso” (1998) e “Baran” (2001) de Majid Majidi, “O círculo” (2000) de Jafar Pahani, “Dez” (2002) e “Gosto de Cereja” (1997) de Abbas Kiarostami , “A árvore da vida” (1998) de Farhad Mehranfar, etc.

No Brasil, aqueles que apreciam o cinema iraniano geralmente são rotulados de “cult”. É pena, porque trata-se apenas de selo que procura imprimir pedantismo aos que percebem e sentem o universal na arte cinematográfica que vem se produzindo neste ‘distante’ país já muito mal caracterizado e dado a conhecer pela mídia hegemônica ocidental.

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