JORNALISMO COLABORATIVO — O HOMEM COM A CÂMERA

Domingos Guimaraens
6 min readApr 21, 2016

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[Ilustração: René Magritte]

De dentro do olho do furacão que se tornou o Brasil nos últimos meses, de dentro desse supletivo nacional de ciência política, tenho pensado sobre a transformação do jornalismo brasileiro, não só pelo surgimento das mídias alternativas, como a Mídia Ninja, mas pela aparição, ou uso mais frequente, de práticas jornalísticas colaborativas. Fazendo um paralelo entre o futebol e o mundo lá fora vejo a força transformadora deste novo olhar colaborativo. No tapete verde onde rola a bola é evidente os reflexos do que acontece fora dele. Por isso que a Copa do Mundo não virá para mascarar nada, assim como foi a Copa das Confederações ela vai expor um pensamento, uma visão estética, um modelo de gestão. Muita gente não tem gostado do que isso expõe, não porque são fãs do esporte ou saudosistas, mas por verem que o modelo aplicado ao futebol é o mesmo aplicado à cidade, ao país. Ao passo que há uma imposição de um modelo estamos também diante de uma horizontalização do olhar e da informação. É esse contraste, ao meu ver, que tem feito explodir as reivindicações por toda parte, a verdade não está mais depositada sobre um altar sagrado.

Rola a bola e dentre as muitas transformações que o futebol sofreu nos últimos anos a mais profunda vem por conta da multiplicação do olho eletrônico. Nas primeiras décadas do século XX os jogos eram filmados, os filmes eram revelados, editados e só aí o expectador via as imagens. O relato, quase ficcional do rádio, ditava o tom da informação. Na Copa do Mundo de 1958 havia um esforço de guerra para revelar os filmes dos jogos, editar e mandar tudo ao Brasil para que, no dia seguinte, o pessoal pudesse ir ao cinema ver os lances. Assim ninguém viu o gramado do estádio Rassunda completamente alagado, antes da final Brasil x Suécia, e os suecos usando esponjas gigantes para absorver a água e espremê-la do lado de fora. Sem imagens a história ganha contornos mitológicos, o que não deixa de ser interessante. Esse outro tempo, com menos câmeras, gerou as lindas imagens do Canal 100, numa época na qual o mundo e o futebol eram mais lentos e cadenciados. A partir de 1970 as Copas do Mundo passam a ser transmitidas ao vivo pela TV e de lá pra cá o boom das transmissões de futebol mudou o esporte e se há um torneio que se transformou profundamente por causa disso esse é a Libertadores da América.

A maior competição Sul-americana de clubes foi sempre marcada pela violência, pelo jogo duro, pela raça e pelo mantra: “Libertadores é guerra”. Bom, o nome dela nasce como homenagem aos líderes da independência dos países sul-americanos: José Artigas, Simón Bolívar, José de San Martín, José Bonifácio de Andrada e Silva, D. Pedro I do Brasil, Antonio José de Sucre e Bernardo O’Higgins, o que confere ao torneio esse caráter bélico. Mas, outra coisa que contribuía para a violência da competição era a pouca cobertura jornalística em imagens. Acontecendo simultaneamente em vários países da América do Sul ficava difícil, até os anos 90, mostrar todos os jogos. Quando eram transmitidos eram poucas as câmeras. Sendo assim tínhamos os relatos dos poucos jornalistas que estavam lá ao vivo, do público, mas o que ditava mesmo a coisa era o olho do juiz e o que ele colocava na súmula, caso encerrado. O couro comia a toda hora e ninguém via nada, ou se via não tinha como comprovar. Hoje com 18 câmeras em volta do campo o futebol se tornou, como o mundo todo, um enorme Big Brother. Os jogadores estão sob a mira de câmeras por todos os lados e por mais que o juiz continue sendo a autoridade máxima, as câmeras registram coisas que amanhã podem pesar na conta de um jogador. Se um zagueiro desfere uma cotovelada num atacante e o trio de arbitragem não vê a agressão, ela passa batida. Mas é quase impossível que nenhuma câmera pegue a cena, o que pode resultar numa suspensão disciplinar grave para a carreira de um jogador. Some-se a isso a comunicação em tempo real com os equipamentos de rádio que o trio de arbitragem e o quarto árbitro usam hoje e o pessoal teve que guardar o galho dentro. Os zagueiros-zagueiros seguraram as tesouras voadoras, os carrinhos com dois pés levantados, as entradas por trás. As imagens cada vez mais em alta definição e em super slowmotion das bordoadas levaram os juízes a serem mais rigorosos com a violência para mudarem a imagem do velho e violento esporte bretão.

Na Copa de 1998 o que a maioria lembra é que o Brasil levou um ferro de 3x0 da França na final. Mas, antes disso, a seleção perdeu pra Noruega na fase de grupos por causa de um pênalti cometido pelo bom e velho Júnior Baiano. Interessante que nenhuma câmera oficial registrou a cena e pela primeira vez, que eu me lembre, um cinegrafista amador apareceu com uma imagem de um ângulo específico atrás do gol que mostrava o puxão do Baiano no grandalhão Norueguês. A imagem confirmava o pênalti e colocou por terra as reclamações dos jogadores, comissão técnica e até dos jornalistas que diziam ter sido aquele um pênalti Mandrake, inventado pelo juiz. O Tino Marcos teve que fazer outra matéria recontando a história da partida.

Penso que o que vivemos hoje é essa horizontalização do olhar. Quando Dziga Vertov fez o lindo filme ‘O Homem com a Câmera’ ele falava desse olho eletrônico, de como esse olhar no campo expandido via a cidade e viria a interferir em seu funcionamento. É isso que temos visto com o surgimento das mídias independentes. Mas não é só a Mídia Ninja, com suas Narrativas Independentes Jornalismo e Ação, que lança um olhar novo para o que está a sua volta. Em todas as manifestações centenas de câmeras de ninjas, piratas, malandros, vagabundos iluminados são o olhar no campo expandido, horizontal. O caso recente da prisão do estudante Bruno Ferreira Telles é sintomático dessa nova era. Bruno é levado para averiguações e preso, acusado de lançar e carregar coquetéis molotov na mochila. A história tem sua reviravolta quando imagens feitas por cinegrafistas amadores, via celular, mostram o manifestante sem mochila e com as mãos livres, na linha de frente, cara a cara com o batalhão de choque, quando o molotov aparece voando e explodindo. A rápida divulgação e comunicação dessas imagens via internet mudam a versão oficial. O juiz que havia dado o pênalti é obrigado a mudar o que escreveu na súmula e soltar o manifestante que não havia feito nada. A história ainda ganha contornos mais dramáticos quando as imagens mostram que quem pode ter jogado o molotov é um PM infiltrado, a paisana, num típico acidente de trabalho como aquele da bomba que explodiu no colo de um militar no atentado do Riocentro, em 31 de abril de 1981.

Com um olhar horizontalizado e uma capacidade de comunicação ágil em tempo real as histórias aparecem de outra forma. Claro que isso não resolve tudo, ainda há juízes. No entanto a dita “mídia tradicional” é obrigada a ceder, a sair do seu lugar de bastião único da verdade e entrar em diálogo com quem está ao seu lado, com essas centenas de olhos eletrônicos que enxergam mais do que apenas três câmeras podem ver. Aqueles que ocupam cargos de poder também terão que descer do seu trono, não dá mais pra resolver tudo em acordões às escondidas. Precisamos ter uma vida política mais ativa de todos os lados, mais participativa, transparente e horizontal. Esse compartilhamento de poder é muito saudável. Com isso não digo que é necessário matar o juiz, mas aqui fora de campo é necessário repensar seu papel, sua importância, sua legitimidade e seu lugar enquanto verdade. O que o olho eletrônico mostra também está sujeito a muitas interpretações, é do jogo, é da vida, mas com uma relação de diálogo aberto, horizontal e colaborativo acho que podemos construir um novo mundo menos violento, sem totalitarismos, mais humano. Afinal, a participação da multidão da torcida também faz a diferença.


Domingos Guimaraens é integrante do coletivo OPAVIVARÁ!, doutorando em Letras e colunista do ORNITORRINCO.
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Originally published at ornitorrincozine.blogspot.com.br on 19/08/2013

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