Ler Juliano é urgente

O livro "Testemunho transiente" engloba tetralogia da obra de Juliano Garcia Pessanha

Thiago Barbalho
ORNITORRINCO site
4 min readApr 5, 2016

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Testemunho transiente, livro de Juliano Garcia Pessanha é um dos mais importantes da literatura brasileira dos nossos tempos. Não se trata de obra inédita, mas de um composto de quatro pequenos livros que saíram em tiragem menor na década passada, vários deles esgotados, pela editora Ateliê Editorial, e que finalmente foi editado em tiragem maior e em volume único, pela editora Cosac.

Muito se diz que a prosa de Juliano é original porque transita entre gêneros. Mas, a meu ver, é preciso certa displicência para não se dar conta de que “transitar entre gêneros” logo vai se transformar num novo lugar comum para se referir à produção textual contemporânea, tempo em que os gêneros de escrita (e de arte, e de sexualidade, e talvez de tantas outras coisas) sofrem esgotamento progressivo. Na verdade, a força maior do texto de Juliano, aquilo que considero o sumo de sua oferta, aquilo que justifica o seu poder em adquirir leitores de todas as áreas e de diversas procedências, é o ineditismo das questões biográficas e da crítica a instituições reveladas numa prosa de investigação filosófica. O texto de Juliano é o de um sujeito que busca a si mesmo, da infância à vida adulta, num mundo repleto de nomes e normas. Juliano fala a partir do seu lugar, de suas experiências, de seu corpo. Nessa postura, ele pode usar conto, ensaio e poesia para formar uma autobiografia; pode falar de autores com cuja obra se identificou e fazê-los parceiros seus. É o que acontece com Kafka, no lugar de quem Juliano se põe para falar, agora, de seu incômodo quanto ao disfarce dos sofrimentos no mundo atual.

“Hoje, passados 80 anos da minha morte, […] o apelo do mundo é tão intenso que toda dor sofrida é sofrida passivamente e aquele que sofre e para quem tudo está estranho pensa que o problema está nele e é com ele mesmo.”

Instabilidade perpétua

O texto de Juliano é carregado da coragem da verdade. Isso significa mergulhar em si mesmo e trazer o seu relato ao mundo por acreditar na contribuição disso com o leitor. É encarar, como queria Susan Sontag, a tarefa de escritor como um ato de solidariedade. Juliano vai às suas profundezas e traz de lá, para nós, leitores, um relato aberto, de exposição, no qual nos vemos tratados. Trata-se de uma leitura de descoberta de si, num processo que se aproxima de uma terapêutica de identificação de feridas para tratá-las. Ressoa aí a passagem de Juliano pelo estudo da psicologia.

Além do relato biográfico, o discurso de Juliano é de forte crítica às instituições, inclusive à instituição literária. Juliano faz literatura e mostra o esgotamento da literatura. Ele usa o seu lugar no mundo para criticar o mundo que habita, este que divide comigo e com você. É um narrador que resolve não baixar a voz, não se adaptar. Sua narrativa (seja ensaio, seja conto, seja aforismo) parece ser a de um sujeito que, ao se ver prestes a afundar num mundo opressor regido por jogos frouxos de vaidade e poder, resolve gritar pelo seu direito de verdade e pela honra de sua visão da fragilidade desse mundo:

“Tanto no lugar-escola quanto no lugar-namoro, tanto no lugar-família quanto no lugar-divã, eu notei sempre a mesma ausência do outro, a mesma falta de rosto e o mesmo sumiço de fagulha e assim, quando cheguei em São Paulo após três meses nos EUA, três meses essenciais no que diz respeito à boa formação de um jovem são, um jovem que após três meses de experiência em país estrangeiro se torna melhor, mais apto e mais antecipadamente reciclado que qualquer outro jovem igualmente são que não tenha tido a mesma experiência, então logo que eu cheguei no aeroporto notei a presença da entidade-mãe e da figura-pai, mas tanto os olhos na entidade-pai quanto os olhos na máscara-mãe não notaram que junto da grande quantidade de espinhas, internas e externas, que tinham pululado do meu rosto, havia se atualizado, prestes a explodir, toda a turbulência de uma questão informulada. A questão ‘há alguma vida verdadeira no planeta?”

— Certeza do agora

É pela força dessa verdade de estranhamento que também as palestras de Juliano têm repercutido e se multiplicado. Sua dicção singular toca em algum lugar difuso nas pessoas, mesmo quando elas não sabem dizer muito bem em que ponto estão sendo tocadas. É, sem dúvida, um ponto de fragilidade, de inquietude, de urgência, de amparo pelo reconhecimento do desamparo mútuo.

Quero dizer com isso que a prosa de Juliano carrega originalidade antes de tudo no que é dito e na abertura com que isso é feito, na honestidade, na coragem de usar a si mesmo como substância de escrita e na singularidade crítica desse olhar. Vale dizer ainda: isso não tem nada a ver com autoficção, outro termo fadado ao esgotamento. Tem a ver, isto sim, com investigação compartilhada e descoberta mútua de si. Até porque, para usar uma comparação que Juliano faz neste vídeo, boa parte da literatura tem feito o trabalho de lustrador de um carro que já está limpo. Por isso mesmo é preciso parar de limpar este carro e se dedicar a alguma relevância.

Era preciso que alguém dissesse isso, e Juliano disse.

É preciso que se aponte para outros lugares esquecidos, empoeirados, à espera de serem limpos.

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Thiago Barbalho
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“Um homem bom“ (Iluminuras, 2017), “Thiago Barbalho vai para o fundo do poço” (Edith, 2012) e “Doritos” (Vira-Lata, 2013). thiagobarbalho.com