Levante: do gesto ao testamento
Diante de tempos sombrios, de tempos de chumbo, em que somos impedidos de ver mais além e, com isso, de pensar e de desejar, o filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman se perguntou: “Como as imagens frequentemente apelam às nossas memórias para dar forma a nossos desejos de emancipação?”
A partir da simples montagem dos gestos representados sucessivamente nos desenhos de Francisco Goya, “O carregador” e “No harás nada con clamar”, e nas representações da revolta nos filmes de Eisenstein, Didi-Huberman viu-se diante de um novo objeto de interrogação: o gesto do levante.
Segundo o filósofo, trata-se de um gesto humano em que são erguidos os braços em direção ao céu, insurgindo-se contra a opressão e o fardo que neutralizam nossos desejos, exprimindo com nossos corpos a nossa revolta, transformando o indestrutível do desejo em ato, em manifestação política.
Na exposição “Levantes”, realizada no Brasil pelo SESC São Paulo em parceria com o Instituto Cultural Jeu de Paume, o curador Didi-Huberman não faz uma antologia das imagens de protestos populares, mas uma “constelação”, em que diz ser possível relacionar as imagens umas com as outras, e ver como elas se respondem.
Essa constelação, organizada em cinco eixos, “elementos”, “gestos”, “palavras”, “conflitos” e “desejos”, para o filósofo, está em constante reformulação ou transformação, pois a cada descoberta, a cada novo aspecto dos levantes, seja político, histórico ou estético, poderão ser inventadas novas montagens “capazes de dar origem a novas emoções e de libertar novos paradigmas do pensamento”.
Para o curador, as imagens dos levantes fazem agir uma forma na memória. Ao serem exibidas tais imagens, há algo que se transmite: uma força, que não se sabe de onde vem, mas que existe, que persiste e que nos faz recomeçar. Citando Samuel Beckett, Didi-Huberman entoa: “É preciso continuar, eu não posso continuar, eu vou continuar”, referindo-se ao desejo sem fim de lutar.
Mas como conservar o transmissível da imagem?
– “As imagens pertencem a todo mundo. Não há autoctonia, nem propriedade no universo das imagens. Como todos os objetos culturais, as imagens são feitas para migrar, à exemplo do selo que é feito para atravessar uma fronteira. Porém, o legado dos levantes depende de nós, da nossa capacidade de transmitir o sentido dessas imagens. Sem o qual, ‘nossa herança nos será deixada sem nenhum testamento’”.
Essa frase, citada por Didi-Huberman na palestra "Imagens e sons como forma de luta", é de autoria do poeta iluminista René Char. Por que citá-la? Aparentemente, porque essa mesma frase, no prefácio de “Entre o passado e o futuro”, de Hannah Arendt, simbolizou a quebra da tradição entre gerações. O “tesouro” da Revolução Francesa não encontrou quem o transmitisse e o preservasse. Segundo a pensadora: “A perda, talvez inevitável em termos de realidade política, consumou-se, de qualquer modo, pelo esquecimento, por um lapso de memória que acometeu, não apenas os herdeiros, como, de certa forma, os atores, as testemunhas, aqueles que por um fugaz momento retiveram o tesouro nas palmas de suas mãos”.
Tendo visto a exposição “Levantes”, em cartaz até dia 28 de janeiro de 2018 no SESC Pinheiros, saio com o entendimento de que a “constelação” faz, primordialmente, emergirem memórias de manifestações históricas, de diversas localidades. Ganha-se, portanto, repertório.
Ao relacionar levantes como o do movimento negro americano, do MST aqui no Brasil, da Revolução cubana, dos operários da fábrica Citroën, dos estivadores chineses, do Occupy Wall Street, do movimento feminista, produz-se a sensação de que é da natureza humana lutar por melhores condições de vida, que a luta continua e que a luta é nossa e está em nós. Urge, portanto, transmitir o sentido dessas imagens. Só assim para continuarmos de alguma forma a tradição da insurgência. Que o gesto do levante conste do nosso testamento, para que saibamos o seu valor e não o esqueçamos jamais.