LOCUTORES FUTEBOLÍSTICOS — VOZES QUE MARCARAM MINHA VIDA
Em 1950, quando o Gigghia meteu o segundo gol do Uruguai no Maracanazo, a perplexidade fez o então locutor Luiz Mendes repetir 09 vezes incrédulo: “Gol do Uruguai…”. São coisas assim que eu escuto até hoje. Eu ouço vozes. Sozinho, sem ninguém por perto. Vozes que vem da televisão, do rádio, do auto-falante. Vozes que contam histórias e mexem com a minha memória auditiva.
Quem não sente a dor da partida ou a alegria da chegada naquela voz aveludada e erótica do aeroporto internacional do Rio de Janeiro? Íris Lettieri, uma gaúcha que processou o Faith No more nos anos 90 porque a banda usou sua voz sedutora sem pedir permissão. No Jóquei Club da Gávea, perdi dinheiro ao som da voz de Ernani Pires Ferreira. O camarada era uma metralhadora de palavras, ele entrou pro Guiness Book por falar 322 palavras por minuto, quebrando o recorde anterior que era de John F. Kennedy! Ernani foi locutor do Hipódromo da Gávea por mais de 40 anos. O “Atenção, foi dada a partida…” depois do tiro que liberava os cavalos, mexia com o meu coração de apostador. “Vão contornando a curva do mengão, aproximam-se da seta dos 400 metros finais, cruzam a faixa final sem que possamos saber quem foi o vencedor”. Enfim, sua habilidade em narrar na velocidade dos cavalos de corrida, pronunciando perfeitamente nomes como: Grape Marjori, Much Better, Desejado Thunder, Barão da Cevada, Olympic Confidence, Monday Blue, Gino-Ferri, Godmustbecrazy, era invejável. Ernani foi uma espécie de Lombardi da minha vida, convivi com sua voz e quando ele morreu em 2012 fiz questão de não saber seu rosto. Ainda o escuto em minha mente e ele segue vivo no meu photochart sonoro.
Ainda andando pela Gávea, lembro da voz do Abelha, o mítico torcedor da Raça Rubro-Negra que, durante todos os jogos do Flamengo, cantava compassadamente a cada 5 segundos MEEEEEEENGO! O sujeito era uma máquina. Do acanhado estádio da Gávea para a imensidão do antigo Maracanã talvez esteja a voz que mais me deixou saudade. “Suderj informa”. Victório Gutemberg Volpato foi o locutor do Maracanã de 1962 a 2004, quando faleceu. Ele morreu para não ver o estádio morrer junto, com o fim da geral em 2005 e a pasteurização das arenas na década seguinte. Volpato era um lord da locução mesmo usando o horroroso sistema de som do antigo estádio. Suas pausas para anunciar grandes nomes como Garrincha, Pelé ou Zico faziam a torcida vibrar e já vinham com aquele chiado de vinil antigo. O sujeito criava patos dentro do Maracanã, sua voz era puro pathos, um romantismo que o século XXI levou.
Nos campos de futebol as vozes que marcaram a vida do Brasil se espalharam pra longe dos estádios. A rádio Nacional foi a primeira a difundir o esporte para todo o país. A televisão também seguiu esse caminho. Muitas dessas vozes estão gravadas no meu imaginário mítico do que é o Brasil. O velho Luiz Mendes, o gaúcho que narrou a Copa de 1950, foi o “comentarista da palavra fácil” durante mais de 60 anos. Sua voz dizendo que Garrincha era o Chaplin do futebol brasileiro e que Pelé era Marlon Brando, me emociona até hoje.
Mas o pai de todos os locutores esportivos brasileiros foi Ary Barroso. Um locutor de rádio que se valia da falta de imagem para criar o ambiente, construir uma realidade fictícia que transformava o futebol em acontecimento épico, por pior que a partida fosse. Sua inconfundível gaita o acompanhava e era tocada a cada gol, um som que me dá verdadeira vontade de pular da cadeira e comemorar quando eu escuto. Não por ter ouvido o Ary narrar, mas pelo som ter ficado eternizado na música de Moraes Moreira. “A gaitinha vai tocar / como nos tempos de Ary Barroso / Pra comemorar mais um gol / Desse meu vitorioso Flamengo”. Ary era Flamenguista confesso, num tempo em que locutores e jornalistas não escondiam suas paixões clubísticas e assumiam que jornalismo e imparcialidade são coisas distantes. Narrando jogos até de cima do telhado de uma casa, quando o Flamengo era atacado Ary apenas avisava: “Ih, lá vem os inimigos. Eu não quero nem olhar.” Ele nunca narrou um gol contra seu time do coração.
Ary Barroso era Flamenguista confesso, num tempo em
que locutores e jornalistas não escondiam suas paixões
lubísticas e assumiam que jornalismo e imparcialidade
são coisas distantes. Quando o Flamengo era atacado
Ary apenas avisava: “Ih, lá vem os inimigos.
Eu não quero nem olhar.”
Outra voz lendária do rádio esportivo brasileiro é a de Jorge Cury. Irmão do cantor Ivon Cury, o Jorge também tinha um gogó privilegiado. Se você ouvir qualquer locução mundo à fora, verá que o momento do gol é de êxtase, mas nenhum locutor se esguela gritando gol. A palavra é pronunciada com ênfase e força, mas de forma curta e logo seguem comentários e descrições da jogada. Aquele gooolll como estamos acostumados aqui no Brasil foi invenção do Jorge Cury. Seu fôlego era tamanho que um golaço podia render um gooolll de até 20 segundos! Nessa época era comum a dobradinha de locutores com cada um narrando um tempo dos jogos. O maior parceiro do Jorge era, o não menos lendário, Waldir Amaral. Se não tinha o mesmo fôlego do seu companheiro, bem, Waldir foi o locutor criador de bordões: “Tem peixe na rede!”, gritava na hora do gol. Outros eram: “Indivíduo competente”, “o relógio marca”, “choveu na horta”, “o visual é bom… Roberto tem bala na agulha” quando o Dinamite ia cobrar uma falta. Foi ainda o mentor intelectual da vinheta Brasil-sil-sil que ouvimos até hoje. A vinheta foi gravada por Edmo Zafire, outra voz das antigas do rádio.
Mario Vianna não era locutor, foi árbitro, apitou as copas de 1950 e 54, foi técnico de futebol e depois o primeiro comentarista de arbitragem, muito antes do Arnaldo, numa invenção do saudoso Doalcey Camargo, locutor da rádio Tupi. Vianna, com dois enes, como ele se apresentava, se intrometia tanto nas locuções que seus bordões são também inesquecíveis. Ele interrompia os gritos de gol para vociferar “gol leeeegal” ou então “banheira” quando o sujeito estava impedido. Não se dignava a chamar ninguém de juiz ou árbitro, eram todos “sopradores de apito” para os quais gritava com aquele erre lá no céu da boca “erroooooou”. O Mario era muito doido, egresso da Polícia Especial, o sujeito não tinha papas na língua. Depois do Brasil e Hungria de 1954 disse que o juiz Mr. Ellis e os dirigentes da FIFA eram uma “camarilha de ladrões” (vemos que não é de hoje). Ele foi expulso do quadro da FIFA e trocou os campos pelo rádio. Como se não bastasse, quase perdeu o emprego na Globo duas vezes. Na primeira, disse que um tal juiz Abraham Klein, além de judeu era ladrão. Acontece que os patrocinadores do programa eram, como Klein, judeus, e não gostaram nada do antissemitismo do Mario. Outra vez, numa mesa redonda na TV, sentiu-se asfixiado pela fumaça dos cigarros que os companheiros fumavam e desabafou — “Parem de fumar, isso é um veneno, polui os pulmões”. O patrocinador do programa era a Souza Cruz, fabricante de cigarros. GOL LEGAL!
José Carlos Araújo e Edson Mauro formaram por muitas décadas o time principal de locutores da rádio Globo. O verdadeiro Garotinho está na ativa até hoje e é também mestre nos bordões. Brilhante locutor de rádio, mesmo quando a TV virou o principal veículo, o José Carlos sacou que não podia competir com a imagem da TV e partiu para uma locução mais lúdica, descrevendo o jogo com seus: “Fez o corrupio, a quebra de asa, deu cheguinho pra meia” e o célebre “Vai mais vai mais garotinho”, que lhe rendeu o apelido. Aproximando quem ainda só ouve no rádio, o Garotinho ainda vibra nas transmissões: “você do volante obrigado pela carona que me dá” além de pedir: “seja paciente nas estradas para não ser paciente no hospital”. Garotinho sempre “apontou, atirou, entrou” narrando “golão, golão, golão” para muitos golaços por aí, incentivando todos a “assistirem na telinha ouvindo na latinha”. Quantas vezes liguei o rádio para ouvir suas locuções apaixonadas mesmo assistindo os jogos na TV. O Bom de Bola, Edson Mauro, também seguia o clima do Garotinho, mas narrava o jogo rindo, numa narração mais cômica e caricata, uma espécie de PRK30 contemporâneo. O gol era pontuado com o inconfundível “é bingo”! Luis Penido é outra lenda, comandou a Super Rádio Tupi durante décadas e ainda está na ativa com suas narrações histriônicas, explosivas cheias de verbos e referências bélicas como “partiu o cruzamento, lá vem a cortada antiaérea” ou o “vai pro livro de ocorrência” quando alguém toma cartão. O Garotão da galera grita alto, assustando quem escuta, tripudia quando seu time toma gol “rala, rala, rala, Mengão” e exalta o adversário “barato bom, barato bom é do Fogão”.
Os locutores de rádio criam o jogo para quem escuta. Suas narrações são cheias de metáforas como quando os times “brotavam no gramado”, o campo como “campina verdejante”, a gaitinha do Ary Barroso, tudo isso serve para construir uma imagem na mente do ouvinte, imagem bem mais intensa do que a frieza da TV com suas 38 câmeras espalhadas pelo campo.
A partir dos anos 80 a televisão dominou as transmissões de futebol, o rádio virou veículo secundário, que sobrevive, mas não é mais a voz da verdade. No caso do futebol, talvez nunca tenha sido. Os locutores de rádio são muito mais comprometidos em narrar a atmosfera do jogo do que servir de fiscal da imparcialidade. Quem já viu imparcialidade no futebol? Nem o árbitro é imparcial. A imagem da TV é matadora, e o olho eletrônico das 38 câmeras vê muito mais do que o juiz, uma imagem vale mais que mil palavras, embora eu nunca tenha visto alguém conseguir dizer essa frase com uma imagem.
A partir dos anos 80 a televisão dominou as transmissões
de futebol, o rádio virou veículo secundário. O olho eletrônico
das 38 câmeras vê muito mais do que o juiz, uma imagem vale
mais que mil palavras, embora eu nunca tenha visto alguém
conseguir dizer essa frase com uma imagem.
Galvão Bueno tornou-se o locutor de TV por excelência. Onipresente nos jogos da seleção, ele sempre narrou os principais eventos. Mas, há contra ele profunda implicância. O coro “Ei Galvão, vai tomar no cu” já foi ouvido em muitos estádios. Galvão tinha a pretensão de ser o locutor total, não perder nenhum lance, entender de todos os esportes e comentar o que estava acontecendo. Essa sua vontade totalizadora é o que gera essa implicância. Em 1991, Ayrton Senna foi campeão do mundo de Fórmula 1. Em sua última corrida, já com o título garantido, deixou seu companheiro de equipe Gerhard Berger passa-lo na reta final para vencer. Só Galvão não se surpreendeu gritando: “Eu já sabia, eu já sabia”, no dia seguinte levou uma bronca do seu Roberto Marinho: “Se já sabia por que não contou, você não é jornalista?”. Galvão não cria atmosferas lúdicas ao redor do que narra, ele é um locutor científico, diz ter o conhecimento, a experiência e ainda a proximidade com os atletas para contar ao público, como um cientista, o que se passa nas mentes e no corpo de quem realmente faz o espetáculo. Lembro dele comentando sobre Piquet, de olhos fechados, no cockpit da Lottus: “Vejam a concentração de Nelson Piquet, olhos cerrados”. Mais tarde Piquet responderia que não estava se concentrando, chegara em casa às 5h da manhã de uma puta festa e estava mesmo era morrendo de sono.
Essa vontade científica de escrutinar o jogo, como se a lente da câmera fosse a lente de um microscópio, também seduziu muita gente e gerou sub Galvões Buenos por aí. Luiz Roberto é até fisicamente parecido. Insosso e anódino, bem comportado e enquadrado no padrão Globo de qualidade ele é apenas uma escada para o nada. Cleber Machado talvez seja o pior locutor que o mundo tenha notícia — ele não narra, ele não brinca, ele fala sobre qualquer outra coisa enquanto a partida rola. É um sujeito confuso, suas frases têm vírgulas, parênteses, colchetes, chaves e ele tem muita dificuldade de terminar um raciocínio. Invariavelmente grita no meio disso um “e o goool” como quem cai sem querer de uma janela, sem nem saber de onde veio a bola. Um pouco diferente desses dois é o Luis Carlos Junior, sujeito que surgiu com o advento da TV paga no Brasil. Há décadas locutor do SporTV, o Luis Carlos Jr. é, segundo o pai de um amigo, o locutor do neoliberalismo. Gordinho, passando uma ideia de prosperidade, sempre de barba bem feita e cabelo engomado, ele é o narrador das fichas técnicas, lendo monótonas informações: cidade de nascimento, signo, música e comida preferida dos atletas, como se fosse amigo íntimo de cada um deles. Fora isso, é eficiente e direto, cumpre seu papel sem se envolver demais.
Há um sujeito que não é um sub Galvão, ele é a outra face da moeda, Luciano do Valle. Durante anos ele foi o adversário direto de Galvão nas locuções. Os dois passaram pela Globo, mas Luciano criou a Band Sports e tentou introduzir o basquete no Brasil, transmitindo e narrando os jogos da NBA. Seu maior mérito não foi sua voz, mas sim dar voz à Silvio Luiz. O Silvio é das antigas, mas foi na Band que ganhou projeção nacional. Era um locutor de TV sem frieza, era completamente maluco e ainda é, pois narra raros jogos na Rede TV, e gravou toda a locução do Pro Evolution Soccer, vídeo game de futebol mais jogado por aí. Eu poderia escrever um texto inteiro só com as frases lapidares do Silvio. “Peeelas barbas do profeta” era sua exclamação mais contundente acompanhada de “Peeela mãe dos meus filhinhos”. Silvio não tinha pena do sofrimento dos jogadores em campo, quando alguém caia e se contorcia depois de uma pancada braba, ele falava num tom calmo, com seu acentuado sotaque paulista: “Tá doendo, nego? Eu não tô sentindo nada”. Sabendo que o sujeito estava vendo o jogo e que ele não precisava ficar ali descrevendo as jogadas, Silvio brincava: “Tá um CUCURUCU do pagode no meio de campo!” ou “Essa falta é meio perigosa, é meio aliche meio muzzarella… depende de quanto azeite passa nela”. “Balançou o capim no fundo do gol” era uma que eu gostava, mas o clássico mesmo é o “Olho no lance: ééé… foi, foi, foi, foi, foi, foi ele… o craque da camisa número 9”, esse ééé e o foi, foi, foi demorava o tempo de alguém dizer pra ele quem havia marcado o gol — um gênio. Era um sujeito irascível, de opinião forte e voz grave, uma vez tirou a roupa numa transmissão reclamando da falta do ar-condicionado, noutra vez, atendeu um telefonema de sua mulher pra avisa-la que estava no meio do jogo. Mas o fato mais curioso aconteceu na Copa de 90. Ao narrar os jogos da seleção dos Camarões, Silvio Luiz, impressionado com a vitalidade dos camaroneses, gritava: “olha o tamanho do negão”. Cartas acusando-o de racismo chegaram à emissora que pediu para ele cortar o bordão. Silvio expôs a questão no ar dizendo várias vezes que estava proibido de falar “olha o tamanho do negão” repetindo a frase a cada vez que comentava a proibição.
Outro figura que narrou TV entendendo que a imagem já dizia muito e o que valia era jogar com as emoções do espectador, foi Osmar Santos. Espécie de Machado de Assis da locução esportiva, o homem inventou, na Record, um momento que a câmera cortava do jogo pra ele, que falava diretamente com o espectador. Seus bordões alucinados eram a expressão do que via. “Ripa na chulipa e pimba na gorduchinha”, “Um prá lá, dois prá cá, é fogo no boné do guarda”, “Sai daí que o Jacaré te abraça, garotinho”, e nos impedimentos gritava “Ele estava curtindo amor em terra estranha”. Suas narrações de gol lembravam a gaitinha de Ary Barroso com o “Tiro-lirolí, Tiro-lirolá e que GOOOOL”. Também foi Osmar que apelidou o Edmundo de Animal. Em 1984, foi a voz dos comícios das Diretas Já. Por sua popularidade, foi sondado para se candidatar, mas nunca quis largar o futebol. Pena que em 1994 sofreu um grave acidente de carro que o deixou com sequelas na fala. Osmar fez frente ao Galvão em 1986 sendo o primeiro locutor da Copa do Mundo, mas infelizmente o estilo mais científico, sóbrio e sem humor ganhou a principal emissora do país.
Quem eu deixei para o final, foi, o que é pra mim o mais surreal locutor de TV. Januário de Oliveira. O sujeito é o Homero das locuções esportivas. Januário também era cego, mesmo sem enxergar, via tudo. Trocava nomes, via improváveis bolas entrarem no gol, anulava gols incríveis. Sinistro era ouvir seus relatos, da rádio Nacional até a Bandeirantes, com seus últimos lampejos na copa de 1998 pela extinta TV Manchete. Era um homem culto. Seus bordões eram também citações do início ao fim do jogo: “Taí o que você queria, bola rolando”, quando o jogo começava. “Tá lá o corpo estendido no chão”, citando João Bosco quando um jogador se contundia. “É disso que o povo gosta” quando a rede balançava. “Olhos nos olhos, se passar fica na boa” citando Chico Buarque quando um atacante ficava frente a frente com seu marcador. “Lá vem Geraldo e Enéas para mais um carreto da tarde” aproximando o espectador dos clássicos maqueiros do Maracanã. “Acabou o milho, acabou a pipoca, fim de papo”, no final do espetáculo, que pra ele era um circo. Muitas vezes Januário se confundia e a bola, que entrara no gol, parecia, para ele, que tinha saído pela linha de fundo. Ajustava a locução no meio da frase e gritava: “Peeela linha de… Goool”. Januário então chutava o nome de algum jogador: “pra mim Torres” até ser corrigido por um repórter de campo “Foi Pimentel, Januário”. “Cruel, muito Cruel o Pimentel”. Torres era um branquelo e Pimentel um negão enorme. Januário não via, ele sentia o jogo. Criou apelidos como Super Ézio, atacante do Fluminense, consagrou outros como Túlio Maravilha do Botafogo e narrou o único gol de Charles Guerreiro pelo Flamengo. Quando um jogador arrematava da entrada da área e acertava a bandeirinha de escanteio, ele urrava: “Sinistro, muito sinistro”. Mas eu gostava mesmo de ouvi-lo narrando os jogos do Itaperuna, do gordo goleiro Pacato que quando defendia uma bola se metamorfoseava na voz do Januário: “Pacato! Virou Gato Guerreiro!”
Cegueiras, apelidos, citações, lances impossíveis. Fui feliz e chorei na voz de muitos desses locutores que narraram episódios presentes por suas vozes na minha memória. Claro que muitos outros locutores poderiam ser citados aqui, principalmente se você não é do Rio de Janeiro e ouve os maravilhosos narradores locais, cada um com a sua peculiaridade. Meu avô trabalhou na Rádio Inconfidência em Minas e disse que uma transmissão teve de ser cortada quando o locutor se desesperou e disse: “Chove pra caralho, o jogo é uma merda e o juiz um filho da puta”. Ou ainda como aquele figura de Pato Branco que narrava a subida do time para a primeira divisão do Paranaense, quando rolou um pênalti aos 45 minutos do segundo tempo, e bastava o Zezinho fazer um gol pra cidade chegar à elite do futebol estadual: “Pato Branco está orgulhosa de você! É o Clube indo pela primeira vez para a primeira divisão. Isso Zezinho, meu garoto, fé e bola na rede. Vamos lá Zezinho! É Pato Branco batendo o coração, batendo o coração. Correu Zezinho, apontou, atirou… PUTA QUE PARIU pra fora!”. Ele não conteve a emoção. Não devemos conter a emoção!
Isso é que é o mais bonito das locuções esportivas. Como na mais antológicas de todas, o relato de Victor Hugo, o uruguaio que narrou o gol do Maradona contra os ingleses em 1986. O sujeito se desmancha chamando Maradona de gênio do futebol mundial de “Barrilete (pipa) cósmico”. “Para que el pais sea um puño apretado gritando por Argentina”, para no final pedir desculpas pelas lágrimas e agradecer à Deus “por el futbol, por Maradona, por esas lágrimas, por ese Argentina 2, Inglaterra 0”. É mesmo para chorar aquele gol.
No entanto, diante de todas essas memórias, ainda falta uma coisa. Olho para o futuro com meu sonho último da locução esportiva. Ouvir uma mulher narrando um jogo de futebol. Por que ninguém pensou nisso antes? Uma voz feminina daria todo um outro clima para o jogo. O poder de sedução das mulheres no meio daquele espetáculo majoritariamente masculino, que combinação! Locução não é descrever a realidade é ficcionalizá-la, sem medo de fugir da verdade, quem melhor que uma mulher para fazer isso? Afinal futebol e verdade não são coisas que andam muito juntas.
Domingos Guimaraens é integrante do coletivo OPAVIVARÁ!, doutorando em Letras e colunista do ORNITORRINCO.
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Originally published at ornitorrincozine.blogspot.com.br on 07/11/2013