Mãos ao alto

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
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6 min readApr 4, 2016

Morei a maior parte dos meus anos na Barra da Tijuca. Gosto de dizer que sou “nascida e criada” lá, só pra implicar com todo mundo que implica com o bairro. Por escapar ao imaginário predominante que se faz dos moradores da região, as reações dos amigos são quase sempre as mesmas: nossa, mas não parece. Eles acham que é um elogio, e não me convencem de que seja. É como quando tem um assalto esquisito na casa de alguém e as primeiras desconfianças recaem sobre as empregadas domésticas, como se fosse uma questão de lógica apontar os implicados, em ambos os casos.

Na Barra eu habitava uma cobertura, e por duas vezes fomos acordados no meio da madrugada pelos seguranças da rua que interfonaram dizendo que havia denúncias de um assaltante pelos terraços. Por terem o mesmo gabarito de altura, e por serem os prédios colados uns nos outros, o suposto assaltante passaria de uma varanda à outra com facilidade. Nessas ocasiões, descíamos todos para a calçada, esperávamos a polícia fazer uma ronda pelos apartamentos, voltávamos a dormir assustados e no dia seguinte corriam os boatos de que um sapato fora encontrado num vaso de jasmins. Durante anos o Cid Moreira morou na cobertura ao lado da nossa, e por isso o vi de cueca samba canção na madrugada duas vezes. A partir da primeira ocorrência, compramos pijamas decentes e passamos a dormir apresentáveis, assim se fôssemos acionados pelos seguranças, teríamos ao menos certa dignidade indumentária, visto que eventuais remelas ou marcas de travesseiro se tornavam itens secundários. A partir destes episódios, também colocamos grades nas portas das varandas, e nos disciplinamos a mantê-las trancadas com cadeados toda noite e toda vez que saíamos de casa.

Nessa época, era comum fecharem o túnel que ligava a Barra à Zona Sul do Rio à noite: bandidos interceptavam o trajeto e faziam um arrastão, assaltando todos os motoristas. O alerta eram os carros à sua frente dando ré, e antes de engatar a marcha, escondíamos no sutiã pelo menos os documentos de identidade e cartões de crédito, dependendo do caso também tentávamos disfarçar os brincos em bolsos da roupa. Eram noites em que voltávamos pra casa com o rabo entre as pernas, sem a noitada prometida, no máximo tomávamos uma cerveja perto de casa antes de dormir, tentativa de estabilizar os batimentos cardíacos.

Tive meu carro arrombado em diversas ocasiões. Numa delas, em Botafogo, levaram o rádio e uma sacola de roupas que eu usaria para o figurino do curta de um amigo da faculdade. Numa outra, levaram o rádio e um sapato rosa da Mara Mac que eu gostava muito, mas que machucava bastante meu pé. Destes dois furtos herdei duas frentes de rádio, e não me lembro que fim dei a elas. Depois destes eventos, passei a estacionar apenas em estacionamentos que por si só já são um pequeno roubo.

Certa vez fui jantar com amigos na Lagoa e ao final fomos deixar Carol em casa. Éramos 5 no carro, Caetano tinha acabado de lançar o e cantávamos “Odeio você, odeio você, odeeeeeeeeeio” a plenos pulmões quando reduzi a velocidade pra virar à direita numa rua. Um homem nos esperava na esquina com uma arma apontada, um segundo homem que nem vi chegou pelo outro lado e saímos todos de mãos pra cima, ouvimos os pneus cantarem, andamos alguns poucos metros em silêncio, eu ainda nem tinha me dado conta que o cano do revólver do primeiro apontava bem de perto a minha cabeça, e logo dei as coordenadas para os quatro amigos que tinham preservado suas bolsas, documentos e telefones: ligue pra minha irmã — o único membro da família que à época não tomava Dormonid pra dormir — me dê o telefone pra eu ligar pro banco, vamos para a Visconde de Pirajá que é mais movimentada. Nos abrigamos na porta de um hotel e em poucas horas eu estava na 14a DP com todos os cartões e afins suspensos. Umas três horas depois saí da delegacia com as ocorrências prontas, umas oito horas depois fui dar um mergulho na praia pra desopilar, uns quinze minutos depois de me sentar na canga caí num choro terrível, daqueles de sacudir todo o corpo. Depois desse assalto nunca mais dirigi à noite, e toda vez que toca aquela música do Caetano escuto um “passa o carro” depois. Eventualmente encontraram o veículo, eu fui até Deodoro resgatá-lo da “garagem legal” e ganhei um guarda-chuva da oficina do seguro que o consertou, repôs todas as peças que faltavam e pintou o carro com uma tonalidade ligeiramente diferente da cor original.

Recentemente um casal de amigos foi assaltado em Ipanema, bem próximo a uma patrulha da PM, que fez uma ronda e encontrou os meliantes. O casal teria de ir até a DP formalizar o assalto e reconhecer os garotos — eram garotos, nitidamente “de menor” — para reaverem seus pertences. Ao considerarem tudo o que aconteceria com os criminosos, hesitaram: temos uma vaga ideia do que acontece em reformatórios. No dia seguinte um deles me telefonou aos prantos, e juntos passamos uma tarde chorando, decidindo que não mais caminharíamos por Ipanema à noite, ou não mais caminharíamos por bairros do Rio em geral, à noite.

Quando a onda de arrastões recomeçou nos anos 2010, resolvemos que só iríamos à praia sem celular — o que, para algumas pessoas que têm dificuldade em encontrar gente em multidões, dificultou bastante as coisas, promovendo praias solitárias — e com o dinheiro contado pra um biscoito e um mate, e passamos a evitar o Arpoador.

Uma vez dois assaltantes entraram na casa da minha mãe. Ela tinha saído, eles ameaçaram a diarista com uma faca de cozinha, amarraram as mãos dela com um cadarço de tênis, vendaram seus olhos com uma camiseta e a trancaram no banheiro enquanto remexeram algumas gavetas do armário. Levaram as joias — algumas consideravelmente valiosas, outras de valor afetivo inestimável — e fugiram pelo play, sendo flagrados por um morador de alguns pisos acima, subindo as escadas de um paredão de contenção que dá numa mata. Aparentemente entraram pelo mesmo caminho: não há registros nas câmeras de segurança do prédio, não se sabe como pularam do play para o primeiro andar. Tudo aconteceu num intervalo de cerca de vinte minutos, enquanto que os protocolos na 14a DP levaram cerca de cinco horas. Os funcionários que ali estavam trabalhavam em ritmo de cágado, numa espécie de protesto contra as condições precárias do local, contra os salários atrasados e as demissões recentes de alguns colegas. Faltava de tudo, inclusive foi uma sorte ter papel para imprimir a ocorrência, o que só foi possível porque naquela manhã haviam recebido uma doação de folhas. Eu fiquei de plantão na casa da minha mãe aguardando a perícia que seria enviada, e quando eles chegaram, contabilizei três metralhadoras naquela casa em que morei por anos, num só dia. E não apenas o policial civil parecia pronto para uma chacina, o perito também estava paramentado com revólver e sabe-se lá mais o quê. Entre observações que não vão dar em nada, disse que digital só pega em madeira laqueada, ou com uma camada de tinta a óleo, “tipo móvel das Casas Bahia, sabe, meio cafona”. A partir desse assalto, minha mãe colocou grades em todas as janelas, o prédio colocou câmeras de segurança em todos os cantos e eu fui grosseira com a vizinha que queria acusar a diarista, que chorava de soluçar quando foi libertada do banheiro, os pulsos marcados pelo cadarço que a amarrou, o medo tremendo das ameaças, as duas filhas pequenas em casa.

Outra vez entraram na casa do meu pai, aquela mesma da qual o Cid Moreira foi vizinho, e levaram o computador que estava sobre a mesa, só. Caramba, que sorte, hein? Pois é.

E é como dizem: vão-se os anéis e ficam os dedos; pelo menos estão todos bem; podia ser pior; imagina se o cachorro ainda fosse vivo, teriam matado; etc. e tal. É claro, agradecemos aos céus, reforçamos nossas crenças de viver intensamente, fingimos não nos importar com as perdas materiais, afinal etc. e tal. E vamos vivendo assim: traçando rotas de fuga diárias, disfarçando o medo para não parecermos paranoicos demais, erguendo grades e instalando vigias eletrônicos e nos parecendo com personagens de distopias, agradecendo aos céus, doando papeis para instituições falidas pelo estado, doando livros para projetos sociais, arrecadando fraldas para projetos sociais, dormindo com pijamas apresentáveis mesmo nas noites de verão, evitando os táxis porque ouvimos relatos de taxistas que assaltam, evitando dezembros e janeiros, que é quando as praias lotam, evitando Botafogo, Ipanema e Leblon, porque tem assalto demais, evitando a Barra da Tijuca, porque tem assalto e é cafona e o trânsito tá horrível.

Não compactuo da ideia de que bandido bom é bandido morto. Estou convencida de que bandido bom é bandido que leva suas coisas, e consequentemente seus pedaços, sua tranquilidade, seu já tão combalido e definhante otimismo. Bandido bom é o que te assalta, e agradeça por ser só isso.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).