Misto Sagrado

Ó deus, salve o pão onde o queijo e o presunto fizeram morada

Thiago Barbalho
ORNITORRINCO site
5 min readJun 6, 2017

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Pegue duas fatias de pão, sobre uma delas deite fatias de queijo e de presunto na quantidade que preferir, cubra com a segunda fatia de pão e coloque a composição no grill ou na torradeira. Espere dourar a superfície do pão e você terá uma das refeições mais sintéticas, derretidas, saborosas, práticas e nostálgicas do mundo: o misto-quente.

Apesar de gostar de cozinhar, muitas vezes eu prefiro direcionar meu tempo para outras coisas tão produtivas quanto: ler, não fazer nada, desenhar, meditar e outras atividades que mantêm minha bunda mole. Em tais horas de intensa dedicação, se tenho queijo e presunto na geladeira e um pão largado num saco, resolvo a minha alimentação em poucos minutos e muito prazer.

Posso comer o misto sentado civilizadamente na cozinha, ou de frente para o computador vendo um episódio novo de Twin Peaks, ou ainda com um livro aberto apoiado sob o prato, dando mordidas suculentas enquanto leio as páginas salpicando-as com gotículas de gordura de queijo derretido. Posso até comer enquanto trabalho, usando uma das mãos para segurar o sanduíche e a outra para desenhar, escrever, pagar contas ou responder e-mails. Só não posso comer vendo o Facebook, porque perco a fome quando confrontado com expressões violentas da mais pura vaidade.

Mas aqui estamos falando de uma refeição ancestral, que nos conecta com épocas diversas da história humana: I. o pão, mais sagrado de todos os alimentos; II. o queijo, outro produto da revolução chamada “a descoberta da fermentação”; e III. o presunto, carne submetida a um processo de conservação vinda do tempo em que não havia na bolha terrestre uma geladeira para garantir à carne alguns dias de frescor.

Depois de preparado o misto, avanço minha arcada ao redor do sanduíche, atravesso sua constituição rompendo cada área com meus dentes sedentos, puxo com a boca o pedaço mordido contra a mão. Seria o misto-quente apreciado no Antigo Egito? Séculos de história, fracassos e sucessos, tragédias, guerras, conquistas, amores, tudo vindo para dentro do meu corpo. Eu me transformo um pouco no misto-quente, e ele em mim.

Nós humanos, embora nem sempre admitamos, nunca estamos assim tão separados do resto das coisas, com fronteiras tão claras, mas esta verdade fica finalmente muito explícita, quase pornograficamente explícita, quando pensamos e descrevemos o ato de devorar uma comida. Ao comer o misto pensando no que ele guarda de história humana, sinto quase como se praticasse uma sorte de canibalismo. Engulo a minha própria história, tal qual um ouroboros. Avançamos na história, eu e o misto-quente, duas coisas mundanas, uma engolindo a outra, as duas tomando um certo proveito para perpetuar sua presença no mundo: eu, ao me nutrir e ganhar energia; o misto, ao se mostrar tão eficiente na soma entre sabor e capacidade de saciedade.

A cena de amor dissolvido entre mim e o misto se distorce quando resolvo colocar ketchup por cima. Não é algo que faça com frequência. Entendo os fãs deste clássico molho, mas eu e ele temos uma relação conflituosa de briga por domínio. Evito colocá-lo no misto-quente porque sei que, uma vez dada a primeira mordida com ketchup, a mordida seguinte sem aquele creme doce e vermelho por cima vai ter um sabor mais apagado, como se o misto per se não tivesse o gosto que tem — e eu sei que tem, porque estava feliz devorando-o sem molho até ali. Por outro lado, se avanço com o ketchup até o fim das mordidas, sinto que distorço o sabor incrível e delicado do sanduíche, bem como a textura perfeita do queijo quente, nem um pouco resfriado pela invasão do ketchup e sua personalidade dominadora. Então prefiro evitar molhos. Gosto do ketchup, ele me seduz, mas aqui são muitas personalidades fortes juntas para que a convivência seja agradável. E o misto merece ter presença plena.

Nesses dias em que pensava sobre o fascínio do misto-quente, procurei no Google notícias trágicas relacionadas a ele. Me ocorreu isto: será que uma coisa tão boa quanto o misto já se meteu em tragédias, já fez mal a alguém? Em outras palavras, o meu mergulho na arqueologia do misto-quente começou a se mostrar uma daquelas buscas estranhas pela pureza das coisas, pela sacralidade de alguma substância no mundo em que eu pudesse descobrir a beleza e a bondade mais incorruptível. Seria o misto a pedra filosofal? Atlântida? A volta à infância dos poetas e compositores? O encontro com deus na terra? A ayahuasca dos materialistas?

Digitei “misto-quente” no Google, procurei na aba de notícias, avancei duas páginas ileso. As fotos eram felizes, douradas e, quando havia alguém, era alguém feliz. Os links remetiam a receitas gourmetizadas, celebridades matando a fome minutos antes de entrarem em cena, restaurantes de café da manhã, um livro de Charles Bukowski. Não avancei para a terceira página, afinal estava convencido de que, se em duas páginas de notícias mundiais nada de ruim aparecera, a minha resposta estava dada: o misto é a hóstia consagrada dos hedonistas.

Deve ser por já ter farejado o potencial místico do misto que toda vez que lia um dos tantos tweets de Neymar dizendo “vou lanchar”, eu imaginava um misto perfeito, O misto, com queijo prato saindo às pencas dos cantos. O lanche de Neymar — jovem herói do desesperado Brasil, com sua origem humilde coroada com sucesso e fama, perpetuando valores tradicionais com sua imagem pública de perfeito bom-mocismo e esperança — o lanche de Neymar só pode ser a coisa mais gostosa, balanceada e beatificada do universo dos lanches.

Mas chega de falar do misto. Sigamos com as nossas vidas e nos esqueçamos da sublimidade paralisante deste prato. É importante que o misto-quente, com sua simplicidade persistente típica das grandes obras, se camufle pelas rotinas, se disfarce de banalidade. Faz parte da natureza histórica, sagrada e duradoura do misto se perder nos dias, dar o protagonismo à vaidade dos homens e seus assuntos urgentes, suas preciosidades, suas comidas raras e caras, seus sucessos blindados, seus grandes acontecimentos. Tudo bem: a sabedoria do misto estará sempre aí, à espera de um atento devoto da vida que, ao mordê-lo, agradecerá pelo ouro encontrado.

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Thiago Barbalho
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“Um homem bom“ (Iluminuras, 2017), “Thiago Barbalho vai para o fundo do poço” (Edith, 2012) e “Doritos” (Vira-Lata, 2013). thiagobarbalho.com