Tatuagens, grades e cinema: três dias num centro socioeducativo em Recife
Visitei alguns dias a escola do centro de atendimento socioeducativo Santa Luzia, acompanhando meninas de até 21 anos que estão em alguma situação de conflito com a lei
“Você só tem essa?”, pergunta-me Fátima, segurando o meu antebraço enquanto tenta compreender a frase que compõe a ilustração tatuada na minha pele, feita por Simone Barreto, uma artista cearense.
Responderei àquela mesma pergunta mais umas oito ou dez vezes, repetindo a cada uma delas o gesto de esticar os braços para tornar mais visíveis os traços dos desenhos que levo comigo (ou pelo botão aberto da camisa), de onde é possível ver os contornos de uma gata preta.
Depois é a minha vez de questionar Fátima a respeito de suas tatuagens e seus significados. Para elas, as tatuagens precisam ter alguma mensagem oculta além do que meramente representam enquanto formas. Ela me mostra vários pequenos rabiscos, todos recém-feitos e ainda por acabar.
A tatuagem é o elo que nos une neste encontro inicial na escola Carlos Alberto Gonçalves de Almeida, anexo do CASE Santa Luzia, uma escola para meninas com até 21 anos que estão em alguma situação de conflito com a lei, na periferia de Recife.
A escola fica na mesma rua e a poucos metros do centro socioeducativo, como são chamados tais espaços no Brasil — um nome mais “adequado” para a antiga e falida forma dos presídios (o nome muda, se mantém a configuração estética e o exercício disciplinar). As meninas deixam o centro socioeducativo diariamente para um período de aulas na escola Santa Luzia. Aqui, elas podem prosseguir com os estudos que iniciaram antes mesmo de serem presas, apesar de muitas revelarem que já não estudavam quando foram indiciadas. O pequeno trecho entre a prisão e a escola é feito num carro sem identificação. As meninas são levadas por um motorista e um agente penitenciário. No banco de trás vão quatro, cinco, às vezes, seis jovens numa só leva. É possível ouvi-las de qualquer parte do quarteirão, imagino. Elas descem do veículo gritando, correndo, dançando, se estapeando. Os corpos são incontroláveis e se manifestam furiosamente pelo espaço, como pequenos redemoinhos. Após atravessarem um segundo portão grosso, que dá acesso à entrada da casa e é fechado por um enorme cadeado, elas estão “livres”. Com exceção das portas da cozinha e a sala dos professores que permanecem trancadas, em todos os outros cômodos as meninas tem a liberdade de andar, entrar e sair abertamente, sem restrições.
Nos quinze minutos iniciais no CASE vou entendendo como me portar nesse espaço escolar tão singular. Elas me tocam e vasculham meu corpo por todos os lados com um interesse vivaz. Perguntam de onde vim, onde moro, o que faço, como é o Rio, se a praia é bonita, se é mutcho caro morar lá, se gosto de rock’n roll, se sou casado, se tenho filhos, se ouço rap. Mal tenho tempo de responder e logo sou abarrotado de outras novas questões. Minhas falas são cortadas por perguntas interessando pouco o que digo e mais a conexão imediata entre nós.
Uma das estudantes carrega consigo um bebê de pouco mais de seis meses, que vai passando de mãos em mãos durante todo o período da aula. No CASE elas cumprem penas variadas. Olhando seus rostos fico imaginando o que poderiam ter feito para estarem ali. Meu olhar se escancara e não disfarça a surpresa enquanto converso com Alessandra, a mãe do bebê, e ela me conta que matou com três facadas o ex-marido, pai dos três filhos, quando tinha apenas 17 anos — após ser vítima de agressões reincidentes. Agora, Alessandra está com 20 anos e aguarda um relatório de comportamento que sairá nos próximos dias e lhe dirá se ela permanece no CASE até novembro ou se já estará livre para retornar ao mundão.
Mundão é como elas se referem ao lado de fora do presídio. O mundão é de onde elas vieram e para onde vão quando cumprirem a sentença ou completarem 21 anos — o que vier antes. Ao sair, as meninas retornam à vida social sem marcas desse passado em seus currículos ou fichas criminais. Retornam com as marcas sensíveis, simbólicas e físicas que as seguirão por muitos anos, intuo a partir do que me contam as professoras.
Neste momento, o CASE comporta 39 estudantes. Por alguma razão, nem todas vem à escola. No turno da manhã trabalhamos com um grupo de no máximo 12 jovens. Nos perguntamos os motivos e a gestão da escola — que é separada da gestão do presídio — também não sabe nos responder. Muitas ficam de “tranca”, a punição para algum tipo de infração. A tranca é um período de reclusão completo, sem direito às atividades educativas e técnicas-profissionalizantes que as meninas podem realizar no tempo de internação. Como muitas são usuárias de drogas, algumas viciadas, acontece de vez ou outra conseguirem comprar as drogas quando estão fora do presídio, nos cursos de manicure ou informática que fazem em outros espaços da cidade. Ao serem pegas consumindo as drogas elas imediatamente são levadas à tranca. Não há qualquer tipo de acompanhamento psicossocial no que concerne ao uso das drogas. É uma questão de polícia e bandido — e pronto.
É impossível decifrar suas idades, embora seja nítido que a maior parte delas não deva ter mais de 16 anos. Durante as aulas elas são obrigadas a vestir da farda escolar, apesar do ato de por e tirar o uniforme se repetir insistentemente ao longo de todo o tempo em que estamos juntos na escola. Por baixo da camiseta que lhes confere um ar mais infantil elas vestem tops curtos que deixam os corpos à mostra, cheios das tatuagens e rabiscos de caneta. Algumas vestem calças de ginástica; outras, bermudões típicos dos skatistas e rappers. Há uma tensão sexual presente nos corpos que se explicita o tempo inteiro. Necessidade de toque e contato físico, seja através da violência, seja manifestado em carícias, abraços, beijos. Elas sentam no colo uma das outras, se amontoam pelo chão, trocam códigos visuais e orais que desconhecemos, cheios de malícia. Há um paradoxo entre esse despertar prematuro de uma sexualidade que se expõe epidermicamente, com intensidade, e uma fragilidade emocional gigantesca. Algo entre a ingenuidade e a perversão, o que lhes deve ter ensinado a vida no crime, no tráfico, na noite, na cadeia. O corpo é uma potência que lhes serve como ferramenta para se impor diante das outras (sexualmente, inclusive) dos agentes e dos professores e professoras — que tentam inutilmente exigir que elas permaneçam vestidas com o uniforme escolar homogeneizador.
Visito o centro socioeducativo como pesquisador para um trabalho de campo que consiste na observação da oficina, coletas de dados e conversas. Nos dias em que permaneço no CASE acompanho o desenvolvimento de uma ação que culminará na produção de um filme-carta, realizado por dois instrutores. A proposta é assistir diariamente a algumas imagens, ouvir sons, conversar sobre o que é ouvido e visto e realizar exercícios práticos.
Uma singularidade da Santa Luzia é o fato de que não há ação coercitiva para obrigá-las a estar na sala de aula. O que, por um lado, cria uma cena onde as meninas só estão ali por que sentem vontade de estar, princípio democrático de horizontalidade; por outro, faz com que a atenção e o silêncio sejam coisa rara. Para iniciar as atividades são necessários, às vezes, dez, quinze minutos, e a rara atenção é muito facilmente interrompida quando alguma delas simplesmente se levanta e sai para beber água ou decide dançar por dez segundos, tomando os olhares de todas as outras. Se numa sala de aula tradicional ou em outro centro socioeducativo o silêncio poderia ser garantido pelo exercício da autoridade e força, aqui ele precisa ser conquistado, precisa partir das meninas mesmo — o que por vezes não acontece.
Nos dias em que permaneço junto delas faço algumas dezenas de fotos. Basta que uma das garotas me veja com o celular em punho para solicitar: “Tio, faz um retrato?”. Poses, carões, marras. Enquanto a professora cuida de outro grupo que realiza um exercício, cinco delas vem até mim, tiram as fardas e pedem pra que eu as retrate. Faço um ensaio de cliques que as deixam com cara de musas do rap. Consigo tirar umas seis fotos até que a professora nos descobre e solicita que todas ponham as camisetas novamente, com um ar repreensivo para mim, principalmente. Assentimos e trocamos olhares de cumplicidade.
Estar representada na imagem, se ver ali, é algo que produz um engajamento imediato. Durante a exibição dos Minuto Lumière que fizemos com todas elas (um exercício simples onde a câmera deve ficar fixa no tripé, sem som, registrando algo durante sessenta segundos) os momentos mais arrebatadores foram justo aqueles em que de alguma maneira elas participavam da construção da cena. Num dos exercícios, fugindo à regra do uso de som, uma das garotas para diante da câmera e “dá a letra” fazendo uma rima improvisada arrebatadora. As colegas vão ao delírio, aos berros. Nós também, é impossível conter.
Não é à toa o desejo de se ver na imagem.
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) possui uma medida protetora que criminaliza a produção de imagens feitas com essas jovens. Como a proposta dos socioeducativos visa à uma ressocialização, é importante que não haja registros em autos (imagéticos, principalmente) que comprovem a vinculação dessas meninas ao ambiente prisional — e, logo, ao mundo do crime. A forma de registrá-las habitualmente, portanto, é cobrindo seus rostos com uma tarja preta ou um efeito de blur, comum nos noticiários de tevê e reportagens criminais. Portanto, poder se mostrar assim abertamente é algo que lhes confere algum direito de expressão que também foi extirpado enquanto são estudantes-presas.
Ao longo de toda a oficina nos perguntamos: como produzir imagens cujos rostos não estejam visíveis e ainda assim se coloquem à altura da experiência estética e política que vivem essas jovens? Como se autorrepresentar na ausência do rosto, principal marca identitária — mas também a primeira a ser capturada pelo Estado na forma de um rosto marcado por um máscara que as culpabiliza esteticamente?
Revelo uma dezena de fotos e entrego no dia seguinte ao grupo retratado. As outras se ressentem e pedem que eu faça novas imagens. Explico que talvez não consiga revelar, o que parece não produzir muita diferença. Logo estou novamente produzindo muitos retratos.
Depois de trabalhar com um grupo excessivamente desordeiro sou solicitado por Solange, uma jovem mais velha do que as outras, aparentemente. Ela me mostra o desenho da Funéria, a clássica personagem da MTV, tatuado na perna direita. A referência em comum faz com que ela me procure ao longo dos três dias, timidamente.
Solange foi presa por tráfico. Ela comercializava as drogas com o marido, em casa. Ele, maior de idade, foi pra uma penitenciária comum. Ela foi direcionada ao Santa Luzia, onde deve ficar até o final do ano. Solange conta pra mim que não se sente à vontade com as meninas e parece ter pouca paciência para os jogos, gritos e gracinhas. Pergunta porque escrevo tanto — durante todo o tempo no centro estou com um caderno onde faço notas para que eu não esqueça das cores das paredes, a ordem das atividades, as falas delas mesmas. Deixo que Solange abra o caderno e folheie os textos, com receio de que leia algo que possa eventualmente ser mal-compreendido. Enquanto vai observando minha letra, por vezes incompreensível, faz indagações sobre a pesquisa. Explico que faz parte de um projeto de doutorado onde gostaria de pensar como o cinema pode colaborar com a educação tradicional, a partir da criação de situações onde jovens e crianças fabulem, criem o mundo e a si mesmas, vivam experiências de alteridade. “Assim, se o cinema pode ajudar a gente a falar da gente? Das coisas que a gente gosta, do jeito que a gente vive?”. Digo que sim. “Ah, acho que ajuda”, ela responde. “E depois você pega as imagens que a gente faz, escreve perguntando porque a gente escolheu mostrar algumas coisas e não outras, junta com isso que você tá vivendo aqui e faz o livro?”, dou uma risada e digo que é a primeira vez que alguém consegue entender minha pesquisa assim tão imediatamente.
Passamos uns trinta minutos conversando. Ela me conta que durante sua última tranca leu a coleção toda do Harry Potter e começou a leitura de um livro sobre meditação, mas abandonou após ouvir das colegas que isso era coisa do demônio. Contesto as amigas e digo que estou estudando meditação também, de como tem me ajudado, de que os demônios são nossos — luz e trevas, simultaneamente. Solange fala de como é difícil controlar os pensamentos, de que às vezes dá vontade de sair correndo. Compartilho do sentimento e da sensação: dá vontade de sair gritando por aí, deixar tudo abruptamente — mas nós dois assentimos que isso não resolve as coisas. Ela me pergunta quando vou embora, digo que logo amanhã. “Mas você volta?”. Penso em mentir e dizer que sim, acabo por falar pra ela que não sei mesmo. “É difícil arrumar gente pra conversar aqui”, ela arremata.
O grupo retorna à sala e seguimos com a escuta dos sons que foram feitos durante a meia hora anterior, enquanto conversamos. Depois de uma tensão entre o mediador e as meninas elas finalmente silenciam e ouvem o que gravaram, quase todas deitadas no chão. A conversa rende boas questões sobre os sons do mundo e nossa escuta reduzida. Elas estão envolvidas na atividade fazendo comentários sobre o que gravaram e como isso se relaciona com outras imagens que fizeram. Já começaram a trabalhar com montagem intuitivamente, sem precisar do nome, sinal de que a oficina vai bem.
Solange passa o tempo todo em silêncio, eu também. Empresto a ela meu estojo e ela usa os marcadores de texto coloridos para fazer um desenho na camiseta da escola, com habilidade de pichadora profissional. No final da aula, enquanto a maioria já se dirige rapidamente para o carro para voltar ao presídio, aos gritos, Solange pede pra que eu tire uma foto dela. Fazemos uma primeira pose ao lado do banner do projeto. Ela está com os longos cabelos soltos e um largo sorriso. Depois vamos à outra sala e fazemos uma nova pose, com ela sob uma bonita luz que atravessa a janela. “Podemos fazer uma selfie?”. Digo que claro e nos posicionamos, os dois com carão, lado-a-lado. Fazemos uns três retratos antes que ela seja chamada a partir. Nos abraçamos e digo a ela pra se cuidar. Ela só sorri e vai.
Queria postar minha foto com Solange, mas ela não pode mostrar seu rosto. O abismo que nos separa é gigantesco e parece intransponível. Dentre tantas coisas, mais uma que define o privilégio que atravessa minha vida e me separa de Solange: posso entrar e sair dali quando quero.
Todos os nomes citados neste texto são ficcionais para preservar a identidade das estudantes.
O projeto “Cartas ao Mundão” é um dos parceiros do inventar com a diferença — cinema, educação e direitos humanos e vem atuando na realização de filmes-carta nos centros socioeducativos da região metropolitana de Recife e interior.