No Brasil não há nada mais solitário do que ser um inocente
Diálogo ouvido na mesa ao lado: o jeitinho brasileiro aplicado ao absurdo
Dois caras conversando (razoavelmente alto):
– Tô meio deprimido.
– Problemas nos negócios?
– Os negócios vão bem, tudo tranquilo lá na firma, se bem que talvez seja mesmo esse o problema.
– Por quê?
– É que não tô metido em nenhum escândalo de corrupção.
– Pô, parabéns.
– É, você diz parabéns mas sabe que isso não pega bem, né, ainda mais pra pessoas do nosso nível social.
– É, isso é verdade. Lamento mesmo você não ter a oportunidade de estar comigo em alguns dos meus rolos. Cara, trabalhar pro pessoal que eu trabalho, é pura emoção, saca, dá um sentido maior pra existência.
– Pois é. Eu adoraria saber o que é isso. Porque do jeito que tá, tá pesado pra mim. O pessoal da academia do clube fica fazendo bullying: ó o otário; aí honestão, como vai essa vidinha besta?; olha lá, lá vem o honestinho descendo a ladeira, na esteira…
– Foda, cara.
– Eles me olham com aquele ar de superioridade dos eleitos, dos que nunca foram nem serão pegos, sabe… me olham como se eu fosse um amador.
– Que triste.
– Até as crianças sofrem pressão na escola, os amiguinhos, no recreio, caçam elas como se elas fossem Pokemons: pega pega o filho do honesto; cházão no filhote do não-corrupto; vai vai, rouba o lanche dele.
– Caramba, não sei nem o que falar. Tô consternado.
– A minha esposa, tadinha, tá com vergonha até de ir no cabeleireiro. Os maridos de todas as amigas dela já têm suas tornozeleiras eletrônicas. Aí eles colocam as tornozeleiras no cachorro, no pé da mesa da copa, emprestam pros filhos levarem pra escola e usarem nos professores caso estes emitam alguma opinião ideológica. É um barato, eles se divertem muito. Só eu, o banana, que não. Minha esposa me deu um ultimato: ou meu nome aparece na Lava Jato, ou já era, devo procurar um advogado (no caso, você, irmãozinho) pra preparar o divórcio. E ela já avisou, vai pegar pesado comigo, vai jogar baixo se for preciso, vai me depenar. Tô com sangue nos olhos, ela disse.
– Cara, que situação horrível, ein. Sabe que uma vez, começo de carreira, ainda idealista ingênuo, defendi uma manifestante que perdeu o olho com uma bala de borracha atirada pela PM. Quando a imprensa noticiou o caso, a moça foi ameaçada de morte. Aliás, não só por telefone, isso acontecia o tempo todo e abertamente no Facebook dela. Ela perdeu o olho e, além disso, ficou um tempão respondendo processos criminais que impingiram contra ela. Mas o pior foi pra mim, sabe, defender uma inocente quase que sujou meu nome. Defender uma inocente sem influência, sem poder nenhum, foi uma dor de cabeça tremenda na minha vida. Mas graças a Deus isso é passado, nunca estive tão bem profissionalmente.
– Poxa, no Brasil não há nada mais solitário do que ser um inocente.
– Graças a Deus e ao Pastor, né, que me ajudou a formar minha clientela. Hoje advogo pros deputados da igreja. E tô muito satisfeito.
– Ah, amigo, você que é feliz.
Nota: Este texto foi escrito a partir de uma crônica de Aldir Blanc chamada Escândalo, que está em seu livro Um cara bacana na 19ª, de 1996. Perdoe o empréstimo, mestre Aldir, mas não fui bem eu, foi a Realidade (o absurdo está na vida, não apenas na literatura), pois isto realmente está acontecendo numa mesa ao lado da minha, num café em Botafogo. Coincidências demais para eu deixar pra lá.