O Brasil não precisa de Heróis

Gabriel Camões
ORNITORRINCO site
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6 min readApr 9, 2016

Para o bem ou para o mal, o Brasil não é mais o mesmo. Nós, milhões de homens e mulheres que fomos para rua nesta sexta-feira (18/03), esperamos que para o bem. Mas não o “bem” da chamada “gente de bem”, trajada de verde-e-amarelo, que cospe, agride e ofende quem usa vermelho, que trata mendigo como animal de circo, que bate em ciclista, que bate em mulher, que chama a presidenta de “vagabunda” e pede a morte dos que não pensam igual. Ontem não caminhamos nesta direção. Ontem nos colocamos em favor do bem da democracia que estamos construindo e consolidando nestes poucos mais de 30 anos e que só foi possível com a presença do respeito, da dignidade e do convívio saudável das nossas diferenças.

Nesta sexta-feira, mais do que a predominância da cor vermelha, Salvador presenciou e celebrou a diversidade nas ruas. Pessoas de todas idades e vestidas com todas as cores, sem qualquer preocupação de que pudessem estar correndo algum risco. Até raras camisas da seleção com o escudo da CBF (símbolo evidente da corrupção neste país) se fez presente.

(Foto: Talita Romeu)

Trabalhadores e trabalhadoras mostraram ontem que não irão tolerar uma investida golpista das elites e da chamada “grande mídia” (controlada pelas elites) contra a democracia. Mostrando que é possível sim resistir, com consciência, com consistência e de forma pacífica e ordeira. Tanto que quase não se via policiais ao longo do percurso. E das 15h às 21h, tempo que estive presente e circulei na manifestação, não presenciei nenhum incidente sequer.

Foi arrepiante estar entre mais de 100 mil pessoas em Salvador. A PM primeiro falou em 40 mil, depois 50 mil, depois 70 mil… A Globo falou o que quis, continuou a roteirizar o Jornal Nacional como uma novela em que Lula e Dilma são vilões e precisam ser destruídos. William Bonner mostrou ter grande inclinação para ator. Sua sobrancelha nunca se moveu tanto e suas entonações e olhares para a câmera nunca foram tão caprichados.

A Globo News e outros veículos chamaram a “gente de bem” — que protestou no último domingo contra o governo — de “povo”. Enquanto nós que estivemos ontem fomos rotulados de “militantes”. Na análise deles éramos todos filiados a partidos. Foram incapazes de reconhecer a pluralidade da manifestação. Não que não sejamos “militantes” no sentido amplo ou que integrantes de partidos políticos não tenham comparecido. Não há razão para esconder isso. Mas parece que o discurso que está sendo construído aposta nessa dicotomia perversa para convencer os que estão ainda compreendendo o processo de que nós que defendemos a democracia e o mandato da presidenta Dilma somos o lado “mal” e que quem combate o governo é “gente de bem”. Parecem ter se esquecido de que não estamos mais em 1964 e que a internet existe. A conta uma hora chega e o preço a pagar não vai sair barato.

(Foto: Talita Romeu)

Mas para além da quantidade de pessoas que estiveram nas ruas, desprezando os números da PM, me arrepiou estar integrado numa manifestação com a cara do Brasil. Um protesto com uma atmosfera de harmonia e que contou com a presença de toda a classe trabalhadora, professores, médicos, artistas, operários e tantas outras categorias. Repleto de estudantes do ensino público e privado, movimentos sociais e sociedade civil organizada. Uma caminhada pautada pelo bom senso e sem luxos ou excessos como vimos no último domingo, sem champanhe ou filé mignon, sem abadá, sem pato gigante, sem área vip e o mais importante: sem a presença de figuras desprezíveis como Bolsonaro e Feliciano, representantes do que costumo chamar de “esgoto humano”.

Ouvi de amigos que não quiseram ir às ruas nesta sexta-feira, ou porque escolheram ir no último domingo ou porque preferiram ficar em casa acompanhando da televisão, que era para eu tomar cuidado. Que tinha gente se organizado para ir provocar tumulto. Procurar briga. Nos agredir. Que iria ter sangue. Que minha mãe, meu padrasto, minha irmã e minha esposa que também estiveram presentes, corriam risco e que preciso ficar atento para o caso de ter que socorrê-los. Mas o risco que o Brasil corria (e ainda corre) se ficássemos em casa era muito maior e mais importante. E não, definitivamente, não poderia perder o bonde da história. Ficar em casa não era uma opção.

Milhões de brasileiros estiveram esta sexta-feira nas ruas brigando não só pela Estado Democrático de Direito, mas para dissolver o ódio cultivado pelas classes dominantes e para curar uma sociedade doente, contaminada pelo vírus da intolerância e do extremismo. É a primeira dose de um remédio amargo e necessário. Mas não podemos parar por aqui. As ruas precisam continuar ocupadas. Há ainda um horizonte de lutas na nossa frente.

(Foto: Matheus Vianna)

Não podemos aceitar que a grande imprensa sinta-se à vontade para aplicar “dois pesos e duas medidas” na construção de narrativas que sempre superdimensionem a força dos movimentos em favor do impeachment e minimizem as manifestação em defesa da democracia. Um simples boicote a Globo e os grandes veículos, apenas desligando a TV ou não comprando os jornais e revistas, simplesmente não resolve. Precisamos pressioná-los e confrontá-los de forma mais direta. Tanto pelo diálogo virtual, mas também presencialmente, mostrando-os que vivemos novos tempos e que eles não possuem mais o monopólio da informação.

Tampouco podemos tolerar que atores do sistema judiciário extrapolem seus limites de atuação e interfiram no processo político de forma arbitrária e tendenciosa, atropelando questões constitucionais e abrindo caminho para que a democracia sangre e se fragilize. A irresponsável atitude do sr. Sérgio Moro de vazar grampos ilegais com conversas do ex-presidente Lula, provocou uma convulsão social que beira o incontrolável, dividiu ainda mais o país e acirrou os ânimos da chamada “gente de bem”, incitando comportamentos violentos e discursos de ódio

Precisamos continuar ocupando as ruas, praças e avenidas deste país para que se compreenda de que o Brasil não precisa de heróis. O Brasil precisa de gente nas ruas fazendo o que fizemos ontem. Com responsabilidade e respeito. O Brasil precisa de um povo consciente da importância de sua atuação no processo político e na construção da democracia. O Brasil precisa de homens e mulheres dispostos a lutar pela preservação dos direitos e pela garantia das liberdades individuais.

Não precisamos de heróis, pois já os temos e eles precisam se tornar protagonistas deste momento histórico. Se existem heróis neste capítulo da nossa história, eles só podem ser os trabalhadores que renovaram seu fôlego e a sua vontade de lutar pela manutenção das conquistas alcançadas nos últimos anos. Todos aqueles que ontem ocuparam os espaços públicos para dizer que nossas instituições estão fortes e que conquistamos uma condição onde não há mais espaço para que ataques golpistas prosperem. A caminhada é para frente. Sempre.

*Análise sobre as manifestações de 18 de março de 2016.

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