O Papel do Editor

Essas são as coisas que ninguém diz a respeito da profissão de uma editora de livros

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
8 min readMar 24, 2016

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“As bagagens da Deborah não chegaram e eu queria que você fosse até o hotel dar uma mãozinha, parece que ela está meio nervosa e precisa providenciar algumas coisas”, disse a minha chefe, em parte se desculpando pela roubada em que me colocava, em parte me fazendo entender que essa era apenas a primeira de muitas tarefas com as quais o editor se depara frequentemente.

A única coisa que eu sabia a respeito da Deborah Harkness, além de que naquele momento ela não tinha nem uma escova de dentes, era que seus livros tinham algo a ver com bruxas. Do Centro até a Barra, pensei, posso ler ao menos um capítulo ou telefonar pra minha prima que sabe tudo do assunto. Na minha cabeça era inconcebível que eu fosse passar uma tarde com uma autora de quem nunca tinha lido nem sequer um tuíte. Quando eu já estava prestes a pegar um taxi para ir ao encontro dela, a mesma escreveu agradecendo a atenção e dispensando meus serviços. Aproveitaria a tarde sem seus pertences para dormir e tentar acertar o fuso horário. No dia seguinte tinha uma série de compromissos na Bienal do Livro do Rio.

Uma das editoras de César Aira diz que seu primeiro encontro com o escritor começou com o pé esquerdo, apesar da mensagem prévia que ele lhe enviara (“I love all my publishers a priori”): ela puxou assunto sobre os muitos livros que o argentino escreve, o que se provou um erro. As coisas só começaram a mudar para melhor quando o assunto passou a ser literatura inglesa.

Eu não sabia de nada disso quando jantei com César Aira, também em função de uma Bienal. Havia dois ou três dias que eu tossia tanto que não era capaz de elaborar perguntas ou planejar pautas. Poucas coisas me apavoram e me idiotizam tanto quanto ter que ciceronear autores, do mais erudito ao mais popular. Especialmente quando sou fã deles. Especialmente, também, quando tenho dois deles à mesa, como naquela noite.

Além de Aira, Paloma Vidal nos acompanhava e revelava que tinha incluído uma cena na peça que estava escrevendo sobre uma conversa que tivéramos numa reunião anterior. Meu deus, eu pensei (e tossi), tentando disfarçar as placas vermelhas que já apareciam nas minhas bochechas. Meu deus eu pensava (e tossia), também, em todas as tentativas de arrancar de Aira alguma frase mais longa ou uma conversa que durasse mais que um minuto. O argentino passou boa parte do jantar com um sorriso enigmático nos lábios que só se desfazia para emitir falas monossilábicas. Comeu um pato, o prato predileto do comissário Maigret, como ele mesmo fez questão de ressaltar; bebeu uma cerveja; ficou ligeiramente ouriçado quando Alan Pauls foi citado em tom de fofoca e de sobremesa pediu um doce que levava morangos. Morangos! Nas primeiras páginas de Como me tornei freira, a pequena garotinha chamada César Aira vive momentos de verdadeiro horror ao provar um sorvete de morango pela primeira vez. O drama é tanto que o pai da criança mata o sorveteiro. Daí por diante, a história é uma história de César Aira: enquanto lê você tem a nítida sensação de que às suas costas está o sorriso meio zombeteiro de Aira. O que, nesse caso, é bastante ótimo.

César Aira e Paloma Vidal

É ótimo também quando o autor desarma toda a sua estratégia de emendar uma conversa de elevador atrás da outra. Durante uma tarde em que levei Deborah Levy para a exposição de Richard Serra (“It’s so emotional, look at all that black!”) discutimos (cof cof cof) arte contemporânea e ensaios. Bem, mais ou menos: ela discorreu sobre esses dois assuntos enquanto eu agradecia mentalmente àquela professora que me fez ler Montaigne. Ao contrário de César Aira, Deborah falou bastante de seus livros, sobretudo do mais recente, e foi curioso finalmente ler a obra em questão depois de ouvi-la e perceber os rastros que ela havia deixado, não sei se de propósito ou não. Naquela tarde eu estava de carro e, para aproveitar o rumo que a conversa tomava, coloquei músicas de Caetano Veloso para ela escutar. Posso jurar que ao final, quando já chegávamos perto do ponto onde a deixaria, a autora inglesa cantarolava o ritmo de “London, London”. Na dedicatória que me deixou, Deborah desenhou a si mesma de perfil, fumando um cigarro.

A dedicatória de Etgar Keret, por sua vez, envolveu a subtração da minha caneta e as instruções que seu filho, Lev, lhe passou: desenhe um carneiro de paraquedas, ele sussurrou, e é exatamente o que se vê na folha de rosto do meu exemplar de De repente uma batida na porta. Há um dado muito curioso na biografia do escritor israelense: seus livros são os mais roubados das bibliotecas de seu país, e tudo o mais que diz respeito a Keret segue essa lógica inusitada que guarda alguma semelhança com os desvios que César Aira nos obriga a fazer. Talvez parte do pavor de conhecer escritores resida nessas revelações e expressões meio insondáveis, porque é por aí que percebemos o quanto as vidas estão intrincadas nas escritas, e vice-versa. Mesmo que o assunto seja vampiros.

Deborah Levy e Etgar Keret

Em um conto publicado na revista comemorativa dos 10 anos da Flip, Margaret Atwood fala de como no passado era fácil identificar um vampiro — “smelly, evil, undead” — e de como só se dependia de alho, crucifixos e o nascer do sol para se livrar deles. Não mais. Quando Anne Rice veio ao Rio, também para uma Bienal do Livro, foi preciso um roteiro de dois dias em igrejas e restaurantes e todo tipo de informação turística, real ou não, que se possa imaginar: detalhes sobre o bondinho do Pão-de-açúcar, a explicação para o surgimento das favelas, a população da Rocinha, por que tem tanta asa-delta nessa praia?, como vocês sobrevivem ao verão?, onde posso comprar gelo para levar para o hotel?, onde fica a editora?, podemos filmar dentro dessa igreja?, quem pintou esse painel?, podemos ir ao Corcovado outra vez? Claro, podemos, e se eu soubesse o grau de curiosidade que a autora tem com tudo teria passado a noite lendo o Lonely Planet Brasil em vez de assistindo Entrevista com o vampiro, o filme, para ao menos poder diferenciar Louis de Lestat.

Vestida de preto dos pés à cabeça, cabelos brancos e colares em profusão, Anne Rice carrega para onde for um pequeno estoque de Coca-cola zero e seu assistente Becket, um aspirante a clone de Brad Pitt com um passado de monge e um presente então dedicado a alimentar as mídias sociais de Mrs. Rice e de registrar cada passo dela, que é seguida por milhares de fãs a quem se refere como “People of the page”. Ambos passeiam encantados pelo Centro do Rio de Janeiro, enquanto eu tento explicar que não é uma boa ideia filmar a tudo e a todos com um iPhone reluzente por ali. No alto do Corcovado, porém, Becket faz quase um longa: é a segunda vez que Anne Rice está ali e chora diante da imagem do Cristo. Faço uma ponta como figurante em boa parte desses vídeos, usando um traje que minha chefe definiu como aspirante a Debra Winger em O céu que nos protege (somos todos elenco de apoio em potencial, hoje sei). Mosteiro de São Bento, Outeiro da Glória, Candelária, todo o roteiro foi feito com os vidros do carro abaixados e o iPhone apontado para tudo o que Anne apontava antes, por mais que eu suasse de nervoso.

Com algumas refeições no caminho, presenciei o momento em que, empolgados com a sonoridade da palavra “pargo”, Anne e Becket acharam que seria uma boa ideia nomear um dos personagens do novo livro com a espécie de peixe que comeriam logo em seguida, e riram ao constatar que eu teria informações privilegiadas a respeito do tal romance. Eu ri quando, espontânea e ingenuamente, Anne perguntou, a propósito dos rapazes que circulam pelos sinais com caixas de chocolates, balas e chicletes: “Julia, is he giving samples?” Era mais um riso de incapacidade. De explicar o que quer que fosse pra ela, porque tem coisas que são difíceis mesmo de entender.

Em dado momento do tour passei o bastão para um outro editor que os levou para conhecer as demais igrejas que constavam da lista de passeios que Anne queria fazer. Trocamos um olhar cúmplice, Lucas e eu, e, já que o cenário era apropriado, rezamos pelo iPhone de Becket, que infelizmente se “perderia” na van que fez o traslado até o Rio Centro.

A passagem de Anne Rice pela Bienal do Livro foi das coisas mais surpreedentes que testemunhei. Como no show de um pop star mundial, pessoas haviam dormido na porta do Riocentro para ter a chance de vê-la de perto. Jovens góticos gritavam e subiam nas estantes do estande da editora no evento, pisoteando tudo o que vissem pela frente. Um cordão de segurança humano foi feito para proteger Anne. Becket não parecia dar conta do que via. Flashes de câmeras davam a impressão de que uma luz estrobo estava ligada a toda velocidade. A geração Crepúsculo estava diante da precursora das histórias de vampiros, a autora que na década de 1970 colocou Louis, Lestat, Armand e a pequena Claudia no mundo, e toda essa horda de botas, cruzes e cabelos coloridos não parecia apavorada nem idiotizada diante da autora, fiquei pasma. Passei duas madrugadas debruçada sobre A entrevista com o vampiro, o livro, e para mais uma surpresa, achei-o verdadeiramente bom, meio sartreano em alguns trechos. E passei uns dias, confesso, procurando buraquinhos em pescoços, no meu e no do Lucas, principalmente. Não viramos vampiros, mas ficamos ligeiramente fãs.

Anne Rice autografando seus livros

Essas são as coisas que ninguém diz quando se é candidato a uma vaga numa editora: confiam no seu teste de copidesque, na qualidade do seu texto e nos seus conhecimentos sobre as normas da ABNT para referências bibliográficas. Não testam sua capacidade para lidar tanto com criaturas mitológicas quanto com usuários do fardão da ABL. É gratificante ver seu nome nos créditos de um livro, e reconfortante saber que você contribuiu para um texto ficar mais bacana ou mais correto, mas de alguma forma, parece, ser um editor passa por essa formação não-ortodoxa que inclui desde hipoglicemias súbitas no meio do tráfego de Laranjeiras a aulas de culinária ayurvédica. Mas isso eu conto depois.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).