O Performer Ivan Ilitch

Numa releitura, descobre-se mais sobre a sua leitura anterior do que sobre o livro / por Leonardo Villa-Forte

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6 min readOct 11, 2016

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Uma das coisas mais interessantes em reler um livro é fundar uma nova percepção sobre aquilo que já passou por nossos olhos anteriormente. O curioso é que tal gesto se aproxima mais de dar uma nova oportunidade a nós mesmos do que de dar uma nova oportunidade ao livro. Numa releitura, descobre-se mais sobre a sua leitura anterior do que sobre o livro, eu diria, soando um tanto generalista. Parto de experiência pessoal recente: a releitura de “A morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstoy.

É a terceira ou quarta vez que releio este pequeno grande livro de não mais de cem páginas. No início dos anos 2000, a novela, cuja primeira publicação data de 1886, serviu-me como porta de entrada para a literatura russa, a qual, na adolescência — não sei se pelas capas, fotos dos autores, ou resenhas e comentários — chegava até mim como fruto de homens extremamente sérios, misteriosos, doentes, ensimesmados, respeitáveis, aos quais deveríamos dedicar certa atitude de cautela ou veneração distante. “A morte de Ivan Ilitch” estragou tudo.

O livrinho me fez rir como se um amigo me contasse, num papo de fim de tarde, uma longa piada. Uma trágica piada. Uma piada comovente. Ri da morte e das pequenas misérias humanas. Como era engraçado, ácido, agudo e certeiro aquele narrador que fala, basicamente, da ascenção e convalescença de um juiz e sua família. Só vejo verdades ali, verdades que preferimos evitar: a indiferença diante do sofrimento dos outros, a mesquinhez que guia decisões pessoais e familiares, a inveja de outros profissionais, a raiva patética que Ivan Ilitch sente por seus familiares que já o veem como um estorvo — raiva patética porque não mudará nada e ninguém a não ser ele mesmo; e o desejo infantil de um velho decrépito em simplesmente ser notado e mimado, como o era quando criança.

Nas primeiras leituras tive a sensação, como disse acima, de que o narrador do livro é certeiro. No entanto, na atual releitura, descobri que o narrador me aparece, muitas vezes, como “mais que certeiro”. É assim no trecho abaixo, na tradução de Vera Karam publicada pela editora L&PM:

“Não permitia qualquer tipo de relações com as pessoas que não as oficiais e, mesmo assim, no ambiente oficial. Por exemplo: um homem chega ansioso por uma determinada informação. Ivan Ilitch, por não ser o funcionário em cuja esfera repousa a matéria, não teria nada a ver com o caso, mas se o assunto do tal homem fosse da sua competência, qualquer coisa que pudesse ser resolvida com o papel timbrado, nesse caso então Ivan Ilitch faria tudo que estivesse ao seu alcance e, ao agir assim, pareceria estar tendo relações humanas e cordiais, obedecendo aos ditames do bom relacionamento social. Mas onde cessasssem as relações oficiais, cessava também qualquer forma de contato. Essa arte de separar tão bem a vida oficial da vida real Ivan Ilitch possuía no mais alto grau e a prática associada ao talento natural tinha-o feito desenvolver esse talento a tal ponto de perfeição que, muitas vezes, como os virtuoses, ele até se permitia, por um breve momento, mesclar suas relações humanas com as oficiais. E se permita-se fazê-lo era justamente porque podia, no momento que quisessse, reassumir o tom puramente oficial e abandonar a atitude humana. E Ivan Ilitch fazia tudo isso não apenas com leveza, prazer e perfeição, mas como quem realiza um trabalho artístico.”

Aqui a ficção brilha, revelando a verdade mais do que a verdade — sempre uma intrusa, sempre forte demais, sempre ofuscante — consegue nos revelar. O mais interessante deste trecho, ao meu ver, é que ele termina negando exatamente aquilo que, no seu início, afirmava com veemência.

O trecho começa com o narrador nos contando que Ivan Ilitch simplesmente não mistura vida pessoal e vida profissional. Temos aqui um funcionáro público tão correto quanto exemplar. Pouco mais adiante, porém, o narrador mostra que a atitude de Ilitch abarca sim certo “afrouxamento” nas relações. Nessa parte, o narrador assume o tom quase cômico de um advogado faceiro de Ilitch, dando-lhe tapinhas nas costas ao dizer que Ilitch mistura as esferas da vida pessoal e profissional somente porque é um virtuose — ele consegue! –, somente porque poderia reverter tal afrouxamento assim que quisesse — como dissemos, é um virtuose –, somente como trabalho artístico!

Esta passagem me parece não só certeira, como “mais que certeira” justamente porque o termo “trabalho artístico” aponta para o que todos sabemos mas evitamos ter consciência: é preciso interpretar um papel quando nas funções públicas mistura-se motivações pessoais com o bem coletivo, e é preciso interpretá-lo com garra como alguém que busca o Oscar, interpretá-lo como se dessa interpretação dependesse toda a sua vida, interpretá-lo como Eduardo Cunha e sua família se dispõem a interpretar uma versão de si mesmos — não sei se com sucesso — em frente às câmeras do SBT Repórter. Poderíamos chamar tais interpretações de um “trabalho artístico”?

A ideia de tais gestos serem uma prática artística soa tão absurda, tão inaceitável, que não somos capazes de enxergar a realidade cotidiana sob este prisma, ou, se o somos, não levamos a sério por mais do que alguns segundos numa mesa de bar a ideia de que um sujeito como Eduardo Cunha — muitos outros caberiam neste exemplo — pode estar, em sua carreira política, executando um trabalho artístico. Trabalho artístico é um termo “positivo” demais para o associarmos, com tranquilidade, às práticas de leviandade ou favorecimento com uso da máquina pública, as quais ocorrem aqui e ali durante “A morte de Ivan Ilitch”.

Sabemos — apesar de não vivermos com esta consciência — que há um papel sendo interpretado nestas ocasiões como a de um juiz que favorece esse ou aquele, como é o caso de Ivan Ilitch. Só que é precisamente por não vivermos de acordo com esta consciência que este saber aparece como um novo saber, e não como o reasseguramento de um conhecimento já adquirido. É estranho: o trecho nos faz saber e, ao mesmo tempo, saber que já sabíamos. Aceitamos, com algum estranhamento — o estranhamento de quem já sabia, mas não tanto, ou não com tal clareza — a ideia proposta pelo narrador de “A morte de Ivan Ilitch” ao final do trecho citado.

Até agora, a proposição de Ivan Ilitch misturar vida profissional e pessoal como quem realiza um trabalho artístico foi uma ideia que nos colocou como um observador de fora, olhando para Ilitch como olhamos para um escultor usando sua espátula sobre o mármore afim de que o mármore adquira a forma que lhe agrada. Não paremos aí: o final do trecho citado nos permite um entendimento a mais: o de que não só podemos ver Ilitch como quem realiza um trabalho artístico, como Ilitch, ele próprio, “de dentro da sua cabeça”, talvez enxergue a si mesmo como alguém que realiza um trabalho artístico. Então o trecho, deslizando da visão de um coletivo sobre Ilitch para a sua própria consciência individual, além de “mais que certeiro”, torna-se perturbador. Usando ainda o exemplo dado — que corre o risco de ser exagerado, mas cabe como ilustração –, não se trata só de como nós podemos enxergar as atitudes de um Cunha, mas como Cunha, ele mesmo, olha para as suas ações, as interpreta e as justifica perante si mesmo.

— Leonardo Villa-Forte é autor de “O princípio de ver histórias em todo lugar” (romance, ed. Oito e Meio, 2015), “O explicador” (contos, ed. Oito e Meio, 2014) e da intervenção urbana-literária Paginário. Mestre em Letras pela PUC-RJ.

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