Origem, lugares e resistência — uma jornada pela Barra da Tijuca

Situada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca é amada pelos seus residentes e vítima de preconceito dos cariocas. Este ensaio busca uma análise pessoal sobre o modo de vida do bairro / por Taís Bravo

ORNITORRINCO
ORNITORRINCO site
9 min readMay 11, 2016

--

Reclamo muito do bairro em que moro — sim, sou esse tipo de jovem da geração Y que aos 25 anos mora com os pais e ainda se sente no direito de reclamar de alguma ou muitas coisas. Mas não é um bairro qualquer, é a Barra da Tijuca, minha distopia pessoal. Não, não vou falar sobre os shoppings centers como não lugares, porque acredito com todas minhas memórias na realidade desses espaços de consumo. Meu primeiro beijo foi no NY City Center — sim, o shopping com a réplica da Estátua da Liberdade. Também não vou reclamar dos condomínios. Tudo isso é plausível para mim. É ruim, mas faz parte do pacote humanidade. Minhas questões são outras, mais pessoais do que urbanas ou sociais. Veja bem, ainda são políticas. Só que talvez não digam respeito a muita gente. Explico demais sobre o que são meus textos antes mesmo de começar. É quase como se eu estivesse pedindo licença ou desculpa — questões de gênero, provavelmente. Enfim, já que chegamos até aqui, vamos nessa.

A Barra da Tijuca é um cenário pitoresco: engarrafamento, Rock in Rio, bandeiras do Brasil, Bolsonaro, panelaço e estupidez em formas não explicitamente violentas. Muita gente gosta de achar graça na figura do Barrense. O que me incomoda também. Se há algo de errado nas famílias emergentes desesperadas por garantias de sua ascensão social, não é aí o início do problema. A nobreza cool da Zona Sul que não precisa provar de onde vem em seus prédios de 55 anos em que já moraram figuras da Bossa Nova me irrita muito mais. De longe é tudo pacífico. A riqueza é um estilo de vida indolor. Mas não cai tão naturalmente em alguns. Os barrenses são a cafonice carioca. Essa é uma visão recorrente — ainda que nem sempre compartilhada — das madames do Leblon aos alternativos da Comuna. Porque os Barrenses são os pobres que não souberam admirar a miséria com Sebastião Salgado ou transformar a cultura popular em consumo irônico. O Barrense não vai pagar 30 reais pra entrar em uma festa em Botafogo que toca o pagode que ele ouviu durante a infância na Vila da Penha. Nós — e aí, fodeu, porque faço parte disso, enfim — temos outra relação com a cidade e seus ritos. A Cultura Carioca, a que é considerada boa o suficiente pra ser levada à sério, nasce e morre no estreito caminho da Gávea até no máximo a Lapa. Se encostar na Central já foi longe demais. A Barra não faz parte disso e nem se importa. Nós somos o entretenimento. O Rio de Janeiro é uma cidade meio burra na melhor forma possível. Somos sensoriais, preguiçosos e damos um jeitinho de ser feliz apesar da merda. Na Barra a burrice é em outro nível. O nível em que a vida só pode ser felicidade, festa de 15 anos, domingo na praia, noite de sexta no Outback, Instagram com legenda motivacional e quem estiver no caminho disso que se mate que morra que não exista. Aquele letreiro “Sorria, você está na Barra” é o verdadeiro imperativo desse lugar. Não é que a dor não tenha vez. É que a performance de uma vida perfeita se encontra na construção desse lugar. Em uma vida perfeita, veja bem, tem sempre alguém pra arrumar sua casa, limpar seu vaso, trazer sua comida e servir sem dúvida com sorriso na cara.

Imagina que loco cair aqui aos 14 anos no auge da minha fase gótica comunista feminista revoltada. Imagina. Se tinha algo que eu desprezava na minha adolescência era a felicidade — ainda vamos escrever sobre esse erro. Na verdade, eu vim morar aqui aos 8 anos, mas ainda estudava em Inhaúma. Aos 10 fiz um curso de teatro no Barra Square — na Barra dos anos 00 o nome de todos os lugares leva Barra no meio e mais alguma palavra aleatória em inglês, meu condomínio é uma versão atualizada e se chama Américas Park — foi ruim, bem ruim. Já dava pra sacar que entre eu e aquelas crianças tinha um universo de diferenças. Não foi tão ruim porque eu também não era exatamente popular entre meus amiguinhos de escola. Não me encaixava em Inhaúma, também não me encaixaria na Barra, acontece. Até hoje meu lugar favorito nessa cidade é o Centro, meu coração fica em paz no meio do caos do SAARA, não faço questão de entender.

Só fui realmente conviver com as pessoas da Barra e fazer parte do bairro quando entrei no ensino médio. Às vezes acho que meus pais fizeram uma jogada genial ao me tacar aqui. Racionalmente eu sei que não. Eles só estavam tentando encontrar um lugar seguro, depois de viverem três assaltos traumáticos em um ano. Em um deles, eu estava junto o que rendeu meu primeiro problema psicológico silenciado. Eu tinha 7 anos e medo de tudo, não conseguia dormir, não falava sobre isso com ninguém, mas meus pais sentiam o mesmo medo e então fomos embora. Ainda assim, às vezes enxergo essa decisão como algo mais profundo do que a pura busca por conforto. Ao me inserir em um lugar que carregava uma ideologia oposta a tudo que nós somos, eles arriscaram perder a filha que criaram, mas com esse risco conseguiram que eu fosse ainda mais inevitavelmente filha dos meus pais.

Foi algo meio: vai lá, usa uma mochila rosa de marca de surfista e vê se isso é suficiente para disfarçar de onde você fala. Não foi. Meu rosto, meu corpo, meus nervos não são delicados. Tudo em mim me entrega. Uma vez estava passando um filme no colégio e um garoto , um que eu especialmente detestava, me comparou a uma atriz negra, não para mostrar uma semelhança, mas para dizer o quanto eu era feia. Ele não precisou explicar a ofensa, estava implícito, encarnada em cada poro das nossas peles nem de longe brancas, mas imersas em racismo, a minha inclusive. Tem um tempo em que digo que não sou branca, mas que, por ter uma grande passividade branca, é difícil me identificar como negra. Porque eu sempre achei que não sofri racismo. Então começaram a surgir umas lembranças que sei que me forcei para apagar. Naquela época não conseguia reconhecer minha semelhança com aquela mulher negra. E na maior parte da minha vida privilegiada fui lida apenas como uma garota moreninha da classe média alta. Se meu colégio e bairro me oprimiam por ser diferente é também porque eu não me esforcei o suficiente para fazer parte.

Meus colegas de classe sabiam — talvez melhor do que eu — de onde eu venho. Hoje vejo na minha aparência e em uma raiva que não me deixa nunca sossegar: Eu venho do nordeste, do sertão, dos índios, dos negros e de alguns portugueses, porque relacionamentos abusivos são parte da história da família. Minha avó paterna foi mãe solteira e empregada doméstica; minha avó materna foi costureira, meu avó materno, pedreiro. Meus pais trabalharam e ainda trabalham muito para termos uma vida estável e confortável em um bairro seguro e com qualidade de vida. E nada disso nos faz comprar o papo da meritocracia, porque ninguém deveria ser obrigado a sofrer para merecer uma vida boa. Meu pai viveu no sertão da Bahia até os 7 anos, em sua primeira semana em um colégio do Rio de Janeiro cuspiu na cara de um garoto que debochou do seu sotaque. Estudava lá de favor, porque sua mãe limpava o lugar, foi expulso, depois de anos voltou, dessa vez como professor. Acho que isso é um desejo que nunca vou conseguir realizar. Eu sou da outra geração, não consigo cuspir na cara de alguém, mas a ânsia me bate diariamente. Sou violenta e sem justificativa. O que minha família passou não deveria me abater, eu tive todas as Barbies e oportunidades possíveis. Mas não esqueço de um modo tão definitivo que quase acredito em vidas passadas — existem uns mitos familiares sobre a minha origem.

Então teve a última eleição em que eu vi a cara do Aécio Neves em todos os carros de luxo desse bairro. Os mesmos carros que quase diariamente me atropelam por ousar andar a pé aqui. Toda hora que encarava aquele sorriso sentia uma pontada no estômago. Era minha raiva adolescente se renovando. Stalkei vários ex colegas de turma. Entre uma foto e outra na praia, eles reclamavam que o Brasil estava virando a Venezuela. Aquela mesma burrice. Quase um orgulho na ignorância. Não teve jeito. Eu que nem acredito mais no projeto político do PT me obriguei a sair fantasiada de Petralha. Foi adesivo, broche, tudo que foi possível. Colei um adesivo do PT na porta de casa. Meus vizinhos reclamavam enquanto esperavam o elevador. Achavam um absurdo, como pode? Meus vizinhos acham que o PT é o comunismo no Brasil. Não tem como eu não falar de burrice, desculpa. Enquanto isso meus amigos na Casa da Cachaça debatiam a importância do voto nulo. Eu bem sei que essa é uma briga perdida só de entrar. Bem sei que aquela vitória não valeu nada. A única coisa que me moveu era uma vontade de enfim ser forte pra gritar: Eu tô aqui e eu não sou como vocês. Revolta de adolescente inútil e improdutiva, sim, e daí?

Aquele domingo foi o mais tenso da minha vida. Na fila pra votar uma senhorinha que parecia inofensiva — de novo é esse um problema desse bairro, é dócil na aparência — dizia: “Vocês não podem votar na Marina, como essa mulher vai representar a gente lá fora? Uma crente… O Aécio é o candidato certo”. Tava lá de novo, a misoginia, o horror aos pobres, o racismo e o desespero pra se associar aos ricos. Sentia a mulher arranhando minha cara a cada palavra do seu discuso preocupado com o bem estar da nação. E eu com meus símbolos do PT no peito. Minha mãe tinha medo de me baterem. Algumas horas também tive, ao mesmo tempo em que estava louca por uma confusão. Vivi aqueles dias eletrizada de ódio e medo.

Gritar “Dilma” na janela depois de semanas e semanas ouvindo o nome do Aécio foi foda. Stalkei de novo meus ex colegas de classe só pra ver o choro. Foi um triunfo perceber que eles podiam se unir e ainda não eram fortes o suficiente. É claro que depois eu voltaria à realidade pra reconhecer que esse governo não está do meu lado, não mais. Então vieram os panelaços, as bandeiras do Brasil se espalhando, o fascismo mostrando as caras sem dó. Trabalhei como vendedora em um shopping daqui e um belo dia vi um avó e sua netinha cumprimentarem o Bolsonaro pelo grande político que ele é. Um domingo feliz em família. Não quero saber se é possível ser pior do que isso, mas não duvido.

Eu não sou da Barra da Tijuca, mas passei a maior parte da minha vida aqui de modo que esse bairro em algum ponto me constitui. Procuro meu lugar e é estranho, porque reconheço e sinto que faz bastante sentido, pensando em quem me tornei. Minha experiência entre essas avenidas e shoppings é completamente distinta da maioria dos jovens que cresceram aqui. Sempre quis pertencer ao outro lado, a gloriosa, cool e culta Zona Sul — e pertenço menos ainda a esses lugares, referências culturais não valem o ponto de origem. Mas eu vivo aqui. Atravesso a Avenida das Américas, circulo pelo Barra Shopping, faço poemas usando o termo Alvorada, vou bastante à praia — o que me salva -, ando em seus ônibus transtornados. Eu sei que para muitas pessoas a Barra é só um lugar muito distante com um trânsito infernal e moradores coxinhas. Não é só isso, esse bairro hostil é um lugar, um território que forma pessoas e possibilidades. Além dos seus moradores, tem uma enorme população de trabalhadores que lotam os pontos de ônibus às 17 horas e talvez seja aí que se encontram as verdadeiras relações urbanas. Odeio a ideologia que sustenta o status desse bairro, mas quando é tudo deserto e silêncio, sou só eu e a avenida indiferente, o monte de confusão no meio da natureza. E quase como estar na casa que me é possível. Aprendi a encontrar minha parte nisso. Nos canais entupidos de esgoto, no mar que tem suas próprias regras, no desespero do 382.

A Barra da Tijuca é uma cidade inventada no meio do tumulto improvisado que é o Rio de Janeiro. Nossa Brasília mirando Los Angeles. Eu moro na esquina da Avenida Malibu, sem sacanagem. Aqui é uma terra prometida em que a classe média pode enfim alcançar a praia, se vestir em logos e ostentar o título de novo rico. Aqui não importa de onde você veio. O real pecado é se negar a apagar essa origem. É por isso que morar na Barra me ensina, diariamente, que a resistência é o único modo de continuar viva. Ainda que para isso nem sempre eu possa sorrir.

Taís Bravo é escritora e cocriadora da Mulheres que Escrevem.

--

--