Paris, Texas, Chevettes & Coincidências

Entre a ficção e a realidade a partir de "Paris, Texas" / por Lucas Túlio

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4 min readJun 1, 2016

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um filme que assisti uns dias atrás pela segunda vez e se tornou um dos meus preferidos. Da primeira vez não bateu, eu o encarei esperando alguma coisa de Hollywood, eu era mais novo, portanto, foi frustração na certa. O filme em questão era “Paris, Texas” do diretor alemão Wim Wenders, de 1984, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes do mesmo ano. O nome por si só já gera uma curiosidade, é no mínimo inusitado: o que Paris a capital dos amantes tem a ver com Texas? Um lugar que, pelo menos para quem tem conhecimento superficial, é cheio de rochas, deserto e clima seco. Aliás é o que é mostrado logo no começo do filme: Walt vai recolher seu irmão, Travis, em um lugar assim, que está desaparecido há quatro anos e anda sem parar hipnotizado a caminho de alguma coisa ou lugar misterioso; Então Travis tenta se reajustar a sociedade e se reconectar com seu filho de oito anos, Hunter, até então criado pelo seu irmão e cunhada. Mais tarde Travis irá tentar um tipo de aproximação com sua ex-mulher Jane. O porquê do nome só se descobre no decorrer do filme, que não por acaso traz uma coisa bastante poética e é usado várias vezes como piada.

Por que decidi dar uma segunda chance ao longa? Não sei. Só sei que valeu muito a pena. A questão é que eu, dia desses, atrás de emprego fui fazer um treinamento em um hotel da cidade. Em dado momento fui ajudar a carregar as malas de duas mulheres. Uma delas, mais nova, aparentava ter em torno de vinte e cinco anos, a outra uns quarenta e cinco. Talvez fossem mãe e filha. Quando a mais nova disse um “obrigado” percebi que não era brasileira. Aquele “obrigado” meio automatizado de banda gringa que vem fazer show no Brasil e só sabe falar isso em português. Já na recepção ela conversou com a recepcionista, em inglês, então, claro, não eram daqui. Como eu estava perto, a recepcionista me perguntou como se dizia a palavra “pousada” em inglês, e tentamos explicar com outras palavras, pois nos havia fugido essa. A hóspede, por sua vez, ouvindo nossa explicação, perguntou: Motel? E eu disse que sim, mais ou menos isso — me veio um lampejo de memória na hora, uma cena do filme onde o personagem principal e seu irmão vão dormir em um motel, e expliquei que, aqui no Brasil, há uma conotação diferente para essa palavra, ela ficou meio embaraçada e disse se lembrar de algo assim. As duas estrangeiras se sentaram. Eu perguntei à recepcionista de onde elas eram. Descobri: Texas. Não me contive e fui conversar com a mais nova, pois me pareceu mais receptiva e simpática. Expliquei porque tinha me lembrado do “Motel”, e ela retrucou dizendo algo do tipo: sim, eu lembro daquela cena no filme “Cidade de Deus”, cena horrível aliás. Por fim perguntei se realmente existia aquela cidade no Texas e ela confirmou. Indiquei o filme, expliquei que era mais lado b, ela disse gostar de filmes assim e que iria assistir, e obrigada pela indicação. Batemos um breve papo sobre viagens, filmes e Texas.

Em certa altura de “Paris, Texas” pai e filho decidem achar a ex-mulher e mãe, respectivamente. Eles tentam fazer isso com base em um comprovante de depósito que Jane faz todo dia cinco de cada mês, referente a uma poupança do filho. A origem de depósito é de um banco em Houston, Texas. Eles vão e se dispõem cada um em um lugar próximo ao banco com walkie-talkies, esperam horas e acabam cochilando quando Jane aparece em um pequeno Chevette vermelho. O garoto acorda no exato instante que a mãe sai do banco, ele grita para o pai acordar depressa, nisso ele corre para o carro onde o pai está e eles a seguem quase perdendo-a de vista. Outro Chevette vermelho aparece, para adicionar suspense e, chegando numa bifurcação, eles têm de escolher qual deles continuar perseguindo. Num lapso de intuição que a biologia e a poesia tentam explicar cada qual de sua maneira, ou como um filhote que sente a presença da mãe, o pequeno Hunter aponta para qual lado ir.

O que me aconteceu é que na saída do hotel, nesse mesmo dia da conversa com a garota estadunidense, quando eu estava indo embora, um Chevette vermelho — que eu nunca havia visto igual a não ser no filme, creiam: atravessa na minha frente. Eu quase segui. E um pouquinho mais de coincidência: enquanto pensava em escrever um texto sobre isso tudo percebi que estava olhando sem ver para uma miniatura da torre Eiffel que descansa perto da televisão da sala, não lembro quem deu.

Lucas Túlio é estudante de Letras e colaborou com este texto para o ORNITORRINCO.

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