Pequeno dicionário de memes

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
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5 min readApr 27, 2016

“Hoje é o dia dela(e)”: começam assim 9 em 10 anunciações de aniversários nas redes sociais. Invariavelmente continuam com “ela(e) que é a melhor mãe do mundo” ou “ele que me ensina todo dia o significado da palavra amor”. É bom que tenha gente para explicar aos desavisados, e é com esse intuito que escrevo este pequeno glossário para quem quer falar bonito nas interwebs.

Antes, porém, gostaria de esclarecer: não sou uma defensora ferrenha da norma culta, canto em português errado desde os anos 1990, acho complicada essa coisa de ter amigxs (creio piamente que os falantes de língua inglesa estão muito mais aptos à revolução de gêneros que nós, lusófonos), não fui ao Boi Tolo, não ouvi o novo disco da Elza Soares ainda, durante um tempo achei que MDMA era uma modalidade de luta e não estou lendo Karl Ove Knausgaard, embora esteja na minha lista. Ou seja: eu sou demodée e não tô entendendo nada, mas desconfio de que Djavan esteja certo quando diz que é mais fácil aprender japonês em braile. Por último, fica a dica: aprenda a fazer esse bonequinho ¯\_(ツ)_/¯, ele pode ser útil em diversas situações.

About last night: anglicismo bastante usado quando você quer sambar na cara da sociedade (ver mais adiante) mostrando que se divertiu muito.

Apenas: o advérbio passou a ser usado em contextos correlatos aos de “olar”, “about last night”, “começando os trabalhos” ou “muito amor envolvido” (ver mais adiante). Basicamente, a palavra precede fotos, gifs, links etc. que supõem algum tipo de ostentação por parte do narrador, ou que indique que ele achou algo muito fofo. Mas também pode ser usado para sintetizar a sua opinião sobre um texto do Gregório Duvivier com o qual você concorda.

Bom dia pra você que _____: acordou gripado, já correu 100 quilômetros, descobriu uma infiltração na parede, matou dez Aedes aegypti… você pode completar ao infinito, de manhã, de tarde e de noite.

Começando os trabalhos: comumente usado para quem anuncia que vai encher a cara. Mas por favor, não comece.

E aí vem aquele povo feminista/LGBT/militante: ainda bem, né? Porque mesmo assim tem gente que ainda tá com dificuldade de entender certas coisas.

E eu fiquei como?: Como? Eu realmente não faço a mínima ideia, me explica.

Gratidão: assim como os poodles foram uma sensação nos anos 1990, “gratidão” foi possivelmente o termo mais usado nos anos… 2014–15? Dele surgiram derivados como “gratitudo”. Importante era vir em letras maiúsculas e acompanhado da hashtag. Para o bem ou para o mal, agora a moda é pug ou buldogue francês, e já não sei mais o que se deve usar para agradecer e parecer bondoso e espiritualizado.

Miga, sua loka: você tem uma amiga e ela é louca. Confere?

Morri: de acordo com a sua fé, morrer pode ter diversas interpretações. Nas interwebs, porém, o verbo é quase sempre usado na conjugação da primeira pessoa do singular em sua forma pretérita. “Morri” é aplicado em casos de excesso de fofura, beleza, graça, etc., sempre indicando que você não aguenta de tanta coisa boa traduzida em uma imagem, um gif, um texto etc. E pior que “morri” são as variantes “morri 3 vezes”, ou quantas vezes forem possíveis morrer metaforicamente. Talvez seja uma síndrome das sete vidas. Eu mesma só morro de desgosto frente a essa mania.

Muito amor envolvido: serve para descrever o suco verde que você posta no instagram, se é que ainda se toma suco verde, ou como legenda para fotos com as amigas, para projetos realizados que você quer divulgar, talvez até sirva para finalizar o texto que começa com “Hoje é o dia dela(e)”, mas não iria tão longe em afirmar.

Olar: corruptela de “olá”, o termo tem origem naquela criança — que já deve ser uma pré-adolescente — chamada Maysa, apresentadora de um programa de TV no qual fazia bullying com o público que telefonava para jogar e concorrer a prêmios (cf. DE NONNO, Isabel). Alguns concordam que a moda já deveria ter prescrito. Você pode usar “olar” antes de postar qualquer coisa, desde vídeos de gatos até links para textos contundentes, mas por misericórdia, não me envie um e-mail ou mensagem com essa saudação, eu jamais responderia.

Quem nunca?: gente, seriously, quem nunca?

Sambar: verbo usado para descrever a execução da dança típica do Carnaval brasileiro. Enquanto gíria o uso corrente é “sambou”, que por sua vez é a forma breve de “sambou na cara da sociedade”. É autoexplicativo, eu adoro, tá liberado.

Sim ou com certeza?: não, obrigada.

#sqn: a forma sintética de “só que não”. Não tem graça nenhuma e ninguém me convence que seja algo mais que Super Quadra Norte, endereço de Brasília, outra categoria de coisas difíceis de compreender.

Sua linda/Seu lindo: honestamente, nem todo mundo é, né? Pense bem antes de usar, não vá iludir qualquer um assim.

Tá tranquilo, tá favorável: miga, sua louca, se você tá por fora dessa volte 10 casas no jogo da vida. #vráááá (ver adiante)

Vai tá tendo: a etimologia para tal é provavelmente um centro de atendimento de telemarketing. O que importa é que se “vai tá tendo”, ou mesmo se já “tá tendo”, você não é obrigado a ir, aleluia.

Vem ni mim, final de semana: vá em outro, em mim não.

Vrá: geralmente enfatiza-se a grafia e as intenções pela repetição da vogal ao final, como “vráááá”. Tudo me leva a crer que é o “iaê” que se usava nos recreios das escolas nos anos 1980–90 e também serve como hashtag para compartilhar réplicas lacradoras a textos equivocados sobre feminismo e afins. Mas por favor me corrijam se eu estiver errada.

Zerar, lacrar, mitar: “Zerar” é a versão hétero e ultrapassada para “lacrar”, assim como “mitar” é a tradução mainstream de direita do segundo, me ensina a Clara Drummond (mas meu sobrinho de 5 anos gosta de “mitar” e ele não é uma coisa nem outra). Todavia, não se preocupe tanto em distinguir os termos: se você está tão confuso quanto eu nessa seara de novos vocábulos, dificilmente alguém se dirigirá a você utilizando uma das três expressões. Gente como a gente não zera, lacra ou mita, apenas “manda bem”. Às vezes.

* Este compêndio in progress foi feito com as colaborações preciosas de Bel Alverga-Wyler de Nonno, Carolina Salomão e Maria Clara Drummond (de quem, aliás, recomendo ambos os livros), sabendo que jamais dará conta da totalidade de verbetes fabricados e viralizados a todo minuto.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).