Duas ou três leituras de férias

Um escritor, dois coreógrafos e essas coisas que a gente não consegue responder

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
4 min readApr 15, 2017

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Batsheva Cia de Dança, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 2014

A mala das férias veio carregada de livros, dentre eles uma edição com entrevistas de David Foster Wallace. A que mais gostei é uma conversa com Dave Eggers, que a certa altura diz, do entrevistado: “Anyway, I remember you once actually answering your phone by saying not ‘Hello’ but ‘Distract me’, which struck me as the truest way to put it — when you pick up the phone, you’re leaving the submersion of good writerly concentration.” Mais à frente, Eggers pergunta sobre as aulas ministradas por DFW na Universidade de Pomona. A questão tem 3 interrogações: qual é o título do curso; o que está na lista de leituras; se o professor usa giz ou pilots sobre quadro branco. As duas últimas ficam sem respostas.

Talvez isso não tenha nada a ver com um aspecto do documentário sobre Ohad Naharin, coreógrafo israelense à frente da Batsheva Cia de Dança, de quem já falei por aqui outras vezes. Ainda no começo do filme, dirigido por Tomer Haymann, Naharin conta que tinha um irmão gêmeo que sofria de autismo. Sua avó um dia começou a dançar para o menino, o que abriu a única porta de conexão possível entre ele e o mundo. Quando a avó morreu, Naharin começou a dançar para o irmão, e começou a dançar para a vida. Pouco mais à frente, o coreógrafo, de expressão sisuda e poucos sorrisos, diz que uma vez, quando perguntando sobre como começou a dançar, inventou essa história toda, porque ela pareceu uma boa história. Taí a associação entre uma coisa e outra: a gente pode inventar as respostas. Curiosamente, e talvez eu esteja ficcionalizando também a sequência das coisas, Naharin começa a sorrir logo depois dessa revelação.

A primeira vez em que vemos seus dentes é quando ele observa sua segunda mulher dançar. Ele a olha embasbacado, como poucos atores conseguem fazer em filmes nos quais têm de olhar embasbacados para uma pessoa, dançando ou não. Como poucas vezes testemunhamos na vida, porque arrebatamentos dessa espécie são raros. Estou falando de alguma coisa muito preciosa mesmo, dessas que a ficção fornece com mais facilidade. Eu acho.

O documentário sobre Naharin — Mr Gaga, no original — me levou para mais um dos livros da bagagem, um texto curto de outro coreógrafo que adoro, o tcheco Jirí Kylián, que levaria alguns outros acentos no nome, caso eu soubesse providenciá-los enquanto digito no Word. O livrinho de pequeno formato é parte de uma coleção das Éditions du Sonneur, intitulada “Ce que la vie signifie pour moi” [o que a vida significa para mim]. O título, Bon qu’à ça, é uma referência a Beckett, que respondeu dessa maneira à pergunta que é colocada para quase todos os artistas: por que você escreve? (e escrever pode ser substituído por outros verbos) A tradução da expressão em francês tem pelo menos duas interpretações. A primeira é que a afirmação de que Beckett só seria bom nisso. A segunda é que ele não seria bom em mais nenhuma outra coisa.

Voltando a Kylián, ele diz que se tornou coreógrafo quando percebeu que seus desejos poderiam se materializar de forma mais satisfatória através de outras pessoas que os executassem, o que é outra maneira de dizer que ele não se saberia bom dançando. O mais bonito do livro, porém, é quando Kylián fala do tempo que passou convivendo com aborígenes australianos, que como muitas etnias, vive sua cultura sem produzir registros duráveis dela. Seus cantos existem enquanto cantados, suas danças existem enquanto dançadas. E ali as pessoas dançam porque aprendem de seus antepassados, e não precisam adornar suas razões, tampouco tornar complexas suas respostas, podem apenas dizer "porque sim". O que deve ser um alívio, mesmo que insistamos com nossas crianças que "porque sim não é resposta". Em outro trecho do livro, Kylián fala de como não se pode mentir dançando, do contrário faríamos de nossos próprios corpos uma ameaça.

A costura possível entre todas essas coisas que me mobilizaram esses dias — David Foster Wallace e as fugas que o “real” fornecia, quando seu mundo parecia ser totalmente o da literatura; Ohad Naharin e seus motivos inventados para o que, de certa forma, talvez lhe seja aborígene; Jirí Kylián e Beckett que guardam um resquício de absurdo em suas afirmações autodepreciativas — se deu numa conversa em que alguém me disse que eu até poderia desistir de ser uma “escritora profissional”, mas que escrever mesmo me era inescapável. Eu não disse nada, mas concordei com ele, ao menos até que seja possível inventar um novo jeito de escrever sem escrever, ou de dançar sem dançar, ou qualquer outro processo de cura, que afinal sempre suspeitei desse aspecto de atividades que nos convocam à nossa revelia, ou apenas porque não somos mesmo bons em mais coisa nenhuma. Atividades que suscitam perguntas diante das quais temos pelo menos duas saídas: fabular narrativas ou dizer logo porque simbon qu’à ça — , e ambas levam a algum tipo de invenção.

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Julia Wähmann
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Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).