Positivamente mórbido

Cinco apontamentos sobre o que vivi na semana do Natal (e que talvez não façam sentido para mais ninguém)

Paulliny Tort
ORNITORRINCO site
3 min readDec 27, 2016

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O Natal do Charlie Brown

1. No dia 25 de dezembro, eu vi o pôr do sol um milhão de vezes. Vi. Ao longo de uma estrada comprida, comprida, que cruza o país do sudeste ao centro-oeste, passando por cafezais, canaviais e plantações de soja. E haja soja para tanto céu. O cerrado, pouco. Mirrado. Mas a soja vicejando com a forcinha dos grãos geneticamente modificados que só deus sabe o que farão com a gente no futuro. E foi nessa paisagem que vi o pôr do sol. Um milhão de vezes. O pôr do sol multiplicado por um sem fim de pensamentos que há dias não me saem da cabeça.

2. Faz um ano que o Júpiter Maçã morreu. Caiu no banho em 21 de dezembro de 2015. Infarto. Tomei um susto quando vi na página da Zero Hora. A primeira vez que ouvi Júpiter Maçã foi em 2000, quando morava na Praia do Cassino. Tocavam Júpiter nas festas daquela Terra do Nunca (morávamos todos em repúblicas de estudantes). Depois um namoradinho me emprestou o Sétima Efervescência e eu ouvia aquele disco o dia inteiro. Não só pela psicodelia, mas também pela afinação com tudo aquilo que acredito ser o espírito do rock. Cansam-me os bons mocismos.

3. Há alguns dias, meu amigo Lincoln Silva disse algo mais ou menos assim no Facebook: “2016 não existe. O tempo é eterno. O que tá uma merda é a vida”. Não sei se a vida tá uma merda, não sei mesmo. Até porque cada um leva a sua e em tudo há mistérios, há causas e efeitos que conheço pouco ou nada. Mas, decerto, 2016 não existe. Decerto, o tempo é eterno. Obrigada, Lincoln. Eu pensava algo muito parecido com isso sempre que ouvia queixas sobre 2016, mas não sabia como me expressar a respeito. É isso. 2016 não existe.

4. No dia 24 de dezembro, acordei com a garganta doendo muito e uma mistura de sensações físicas desagradáveis que teriam me deixado na cama. Mas eu estava na praia e era preciso aproveitar, já que moro em Brasília. Fui. Praia do Prumirim. Mar azul esverdeado, liso. Praia de tombo: você dá dois passos e a água já cobre. Mas tudo relativamente calmo. Deu para nadar e ir até bem longe da areia, depois ficar boiando de barriga para cima, distante de todo mundo. A garganta e o resto foram se esquecendo de mim e, à noite, eu já estava boazinha. Depois eu soube que dei uma puta sorte; aquele costuma ser um mar bravio que só surfista encara. Há que se ter sorte na vida.

5. Tenho escutado muita música triste. Muita. Dessas que desatam fitas dentro da gente e deixam tudo solto lá dentro. Dessas que entram como vinho no corpo vazio de alimento. Dessas que parecem um mergulho em que você afunda, afunda, afunda e volta exausto, com os cílios encharcados, pesados. As músicas tristes são cruéis com a gente. Mas é assim. O pão precisa ser sovado. Neil Young e uma cerveja IPA. Sibylle Baier e uma Red Ale. Because, dos Beatles, e uma Heineken (porque não se acha cerveja boa em lugar nenhum de Itamambuca depois das dez da noite).

Eu falei que talvez não fizesse sentido.

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Paulliny Tort
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Autora do Erva brava (Fósforo), vencedor do APCA 2021 e finalista do Jabuti 2022.