PRA GENTE BRASIL! — O Futebol como foco capital.
Ilustração: Luiz Alphonsus
Eu queria torcer, agarrado a lenços brancos, torcendo-os, como faziam as damas que originaram o termo torcer nos anos 50. Queria 90 minutos de futebol, apenas. Mas é tudo tão maior que apenas isso que não dá. Lembro do meu pai me levando pela primeira vez ao Maracanã, 1987, Flamengo x Santa Cruz com 3 gols do Zico. A emoção maior ficou por conta de uma bicicleta que beijou o travessão, não me lembro dos gols, lembro só dessa bola que nunca entrou. No futebol nem sempre o score é o mais importante. Todas as emoções que vivi nos mais de 300 jogos que vi no antigo Maracanã, com meu camarada Pedro Birman, se confundem com sons de bombas e gritos do pessoal nas ruas, porque dentro dos estádios a FIFA controla tudo, mas do lado de fora não é bem assim. O #pragentebrasil, do meu amigo Pedro Rocha, não sai da minha cabeça. Durante essa Copa das Confederações de 2013 vivi a contradição de querer torcer, só por esporte, mas ver o esporte mergulhado na crueldade da FIFA e na violência policial. Não foi fácil não conseguir torcer, essa vontade de me agarrar a uma velha paixão junto com uma raiva que aponto a tudo aquilo que se colou a essa mesma paixão, e que hoje me impede de conseguir vivê-la plenamente, me deixou meio sem rumo.
Através do futebol consegui entender algumas coisas sobre o mundo. Suas regras tentam garantir que, mesmo estando em lados opostos, seres humanos mantenham a civilidade sem agressões e pancadaria, num jogo que se dá dentro de um campo definido onde o contato físico existe, mas a agressão é falta, passível até de punição com o cartão vermelho, dependendo da interpretação do juiz. O Estado, pra mim, deveria funcionar como essa regra que impede o jogo de descambar pra violência, mas quando o juiz entra em campo disposto a dar porrada quem se defende leva o cartão vermelho, afinal, a interpretação da regra é do juiz. Aprendi também com o futebol que a arquibancada é uma tribuna livre, até o palavrão é liberado. Na escola eu tinha uma professora que dizia: “Não fala palavrão menino, isso daqui não é o Maracanã”. Ou seja, lá no Maracanã palavrão podia. Se até palavrão era permitido valia gritar por causas mais nobres, não só pra empurrar o time que é causa muito nobre, mas também contra uma guerra, um político, ou sei lá. Mas a FIFA, assustada com tanta liberdade, criou um Código de Conduta nos Estádios. Duas torcidas sempre duelaram nos estádios de futebol, duelos de gritos onde cada lado canta seus argumentos, deprecia as conquistas do outro, enaltece as suas, mas todos podem gritar. Verdade que uma galera descamba pra violência, não é legal, mas acontece aqui ou em Londres e a PM sempre foi o lado mais boçal dessa história. No item G desse código de conduta em estádios FIFA aparece a proibição de: “promover mensagens políticas ou ideológicas ou qualquer causa beneficente”. A arquibancada não é mais uma tribuna livre, é um lugar também cercado e compreendido pelas regras da FIFA (embora a vaia ela não consiga impedir). Mas a intenção não é que os lados opostos joguem um jogo limpo, a ideia é só calar a boca de quem pode incomodar. Foi visível o desespero dos fiscais quando bailarinos ergueram faixas contra a privatização do Maracanã e contra a homofobia dentro do gramado, na cerimônia de encerramento da Copinha. “Ser gay é mara” dizia uma das faixas, essa me emocionou, afinal um estádio de futebol está sempre grávido de uma forte energia homoerótica, mas ninguém fala sobre isso.
Quando os protestos começaram o presidente da FIFA, Joseph Blatter, disse não entender o porquê dos gritos contra a FIFA, afinal nada foi imposto por ela, o Brasil pediu a Copa. Seu tom era de quem diz “bem-feito, otários”. Senhor Blatter o Brasil não pediu a Copa do Mundo de futebol, o Brasil é o futebol, numa concepção maior do que este esporte representa para a cultura nacional, vibrando em cada pelada de várzea. Sim, o Brasil é o único país que participou de todas as Copas da FIFA, o que mais venceu, o que mais fala sobre isso com autoridade, e a própria FIFA não faz sentido sem a existência de países como o Brasil. Natural que a Copa acontecesse aqui. O que não é natural é que se imponha um modelo de gestão para o futebol e para o país. Os absurdos exigidos pela Lei Geral da Copa foram impostos. Sim, políticos ávidos por lucro, votos e prestígio assinaram tudo, mas ainda assim tudo é imposição da FIFA. A maneira de construir os estádios, de torcer, de lucrar inescrupulosamente com o futebol, tudo isso é sim imposição da FIFA. Roubaram o futebol da gente, transformaram algo da nossa cultura em uma bolsa de negócios. A festa do futebol é de 22 malucos num campo correndo atrás de uma bola com uma torcida em volta que possa fazer barulho à vontade, não a festa das empreiteiras e dos grandes conglomerados multinacionais, isso ninguém pediu, e é por isso que se vai a rua gritar contra a FIFA e a maneira da FIFA de gerenciar o futebol e não contra o futebol enquanto jogo, ginga, drible e esporte que, assim como muitos protestos e passeatas que temos visto, evocam um profundo senso de coletividade. Os que acharam que o circo do futebol calaria as massas podem começar a se arrepender. A internet vaza até o apoio dos jogadores da seleção brasileira ao protesto. Conscientes ou não de seu papel em todo este jogo de forças, e muito bem assessorados por seus mídia trainers, os convocados do Felipão não sofrem mais a lei da mordaça imposta pela CBF nos anos 80, quando nem o doutor Sócrates, célebre criador da democracia corintiana, podia falar sobre política. Ninguém vai se calar com um gol, um título. Nem os usuários do velho e violento esporte bretão, como eu, estão calados. Sair para as ruas com uma multidão capaz de encher o antigo Maracanã me emocionou enormemente, ainda mais por ouvir que as melodias dos cantos das palavras de ordem de agora são as mesmas dos cantos de torcida do velho estádio que foi destruído às margens da Radial Oeste. Cantos que vem de antigos sambas e que me emocionam muito mais que o hino nacional. É possível transformar, recriar, transcriar.
O cineasta Pier Paolo Pasolini disse um dia que o futebol do mundo era prosa enquanto o brasileiro era poesia. O Brasil se impôs dentro de campo sobre todas as seleções do mundo pois a ginga, o improviso e um posicionamento tático menos rígido, se esgueiravam por entre a marcha marcial das escolas europeias. O Brasil reinventou um jogo colocando neles passes de calcanhar e malabarismos, como a bicicleta, que não estavam nas regras. Conta-se que na primeira bicicleta desferida por Leônidas da Silva o juiz parou tudo marcando falta técnica. Hoje nem a FIFA consegue impedir a bicicleta, embora prefira o carro. No entanto, desde que Pelé amarrou as chuteiras antes da bola rolar na final da copa de 70 a coisa mudou. Essa história sobre o Pelé é bastante simbólica. Nos anos 60 as empresas Adidas e Puma criaram o pacto Pelé. Contratar o atleta do século para ser garoto propaganda sairia muito caro, melhor deixar o Pelé sem patrocínio. Foi assim até 1970, na primeira copa do mundo transmitida ao vivo pela TV, quando Rudolf Dassler quebrou o pacto e calçou a Puma nos pés de Pelé. Instruído por Rudolf Pelé pediu ao juiz um segundo para amarrar suas chuteiras novas antes do jogo começar, ali as câmeras do mundo todo, ainda inocentemente, estamparam em mais de meio milhão de aparelhos de TV ao redor do planeta a marca da Puma. A relação fluida que o mercado foi estabelecendo com o futebol parecia um caminho natural. O esporte mais popular do planeta como veículo para a propulsão de grandes marcas. Os números cresceram assustadoramente e o futebol se tornou um dos negócios mais rentáveis do mundo. Mas, rentável pra quem? A desculpa do mercado é a de que há uma contrapartida na injeção que o futebol gera por onde passa. Uma grana que investida no esporte acaba respingando pra quem tá do lado, essa é a desculpa do “legado” que a FIFA tanto alardeia. No entanto, com o Pan-Americano de 2007, vimos o quanto de legado realmente respinga na maioria da população. Por isso é muito simbólico o país do futebol gritar contra a FIFA, aqui não deu pra calar a boca como fizeram com a África do Sul. O secretário geral da FIFA foi obrigado a admitir que fora dos estádios o tal legado da Copa ainda não apareceu, embora não tenha comentado a brutal interferência policial nos protestos. No entanto o afã pela grana parece cegar muita gente. A capa da revista EXAME de 29 de maio último estampava em letras gigantes a manchete: “Como o capitalismo pode salvar o futebol brasileiro (e o seu clube)”. Rapidamente me lembrei de um fenômeno que atravessou alguns clubes brasileiros a partir da metade dos anos 90.
Nessa última década do século XX algumas multinacionais enxergaram o potencial do futebol brasileiro. Muitos clubes mal administrados, uma enorme população apaixonada por futebol que, com os ajustes feitos pelo plano real, poderia crescer enquanto população ativamente consumidora. Os cifrões brilharam nos olhos dos executivos que despejaram dinheiro nos clubes brasileiros imaginando que onde há afluxo de capital em abundância há retorno em abundância. Os clubes, já quebrados àquela época abriram as pernas. O jornalista americano Franklin Foer escreveu em 2004 um livro chamado Como o futebol explica o mundo contando em detalhes, entre outras tantas coisas, a história dos escândalos de corrupção e má administração quando o Nations Bank of America, fundos de investidores e a ISL despejaram grana em clubes como Vasco, Cruzeiro, Corinthinas e Flamengo. Segundo ele a ideia destes investidores era substituir o velho modelo dos cartolas aproveitadores pela ética e o profissionalismo do marketing moderno. Juca Kfouri, respeitado jornalista esportivo, saudou a iniciativa dizendo “O capitalismo está vencendo a luta contra as atitudes feudais que por tanto tempo prevaleceram no esporte”. Jornais alardeavam que em poucos anos o futebol geraria 4% do PIB. Quem acompanha a política do futebol lembra que não foi bem assim e, nas palavras de Foster, segue o fim trágico desse esforço do capital: “Apesar da ambição e dos recursos, os investidores estrangeiros nada fizeram para mudar essa situação. Menos de três anos depois de chegarem, eles saíram derrotados do país. No Corinthians, a torcida realizou manifestações de protesto contra a Hicks, Muse por não ter cumprido a promessa de comprar grandes jogadores e construir um estádio moderno. No Flamengo, a ISL foi à falência. O capital externo não havia transformado o futebol brasileiro numa NBA do esporte global nem o livrara da corrupção. Na verdade, segundo muitos indicadores objetivos, o esporte está agora em pior estado do que quando os investidores estrangeiros chegaram. Assim, esta é mais do que uma trágica história de decadência do esporte. É um exemplo de como as facetas negativas da globalização podem solapar as boas. É um relato de como a corrupção supera a liberalização”
O jornalista americano analisa com precisão a corrupção e a maneira populista que os cartolas brasileiros administram o futebol, no entanto a falha não é apenas do caráter dos nossos cartolas, mas dos desejos de lucro e da corrupção dos investidores estrangeiros numa conta que não fecha. A ISL não faliu apenas administrando o Flamengo por três anos. Foi de 1976 até 2001, quando faliu de fato, que a ISL tinha o monopólio da comercialização dos principais eventos da FIFA. A empresa suíça se envolveu em muitos escândalos de corrupção, incluindo a compra de votos de chefes de delegação das federações nacionais que decidem sobre, por exemplo, as cedes das Copas do Mundo. Você pode pensar que essa corrupção interna é algo banal, no entanto é válido lembrar que a FIFA tem mais países afiliados do que a ONU, o que a coloca num importante lugar dentro da política internacional. Política essa que foi por décadas administradas pelo brasileiro João Avelange, sogro do ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira e mestre do atual presidente da FIFA, o suíço Joseph Blatter. Ou seja, a estrutura feudal da administração do futebol brasileiro se repete na administração da entidade máxima do futebol e, se formos só um pouco adiante, encontraremos todas as conexões entre este universo feudal e as grandes marcas que hoje patrocinam o futebol no mundo. Se você se interessa por esse tema sórdido pode ler o “Jogo Sujo — O mundo secreto da FIFA” escrito pelo inglês Jennings Andrew. Essas histórias mostram como um pequeno grupo lucra desvairadamente com o futebol às custas de todos os apaixonados pelo esporte, com consequências pra todos aqueles que nem sabem quem é a bola. O legado que a FIFA promete atingirá algumas poucas famílias que comandam a entidade, as empreiteiras, as construtoras e marcas de produtos esportivos enquanto ao resto de um povo restam migalhas. Essa é uma conta que não fecha.
Vivemos hoje a ditadura das megacorporações, elas vendem que seu poder financeiro avassalador é a cura para a miséria do mundo, mas sua perversa relação com o Estado, principalmente nos países ditos “em desenvolvimento”, concentra ainda mais as riquezas do que cura as mazelas. As declarações do jogador Ronaldo, o fenômeno, são sintomáticas. Em entrevista coletiva chegou a dizer que para fazer uma copa não é preciso de hospitais e sim de estádios, e que cabe ao governo dividir de maneira correta os investimentos no esporte, saúde e educação. Mesmo sem querer a declaração de Ronaldo é uma crítica à relação que a FIFA estabelece com os governos dos países onde realiza as suas competições. O esforço imposto pela entidade para a construção de 12 modernas arenas esportivas junto com a gana dos governantes pelo prestígio trazido por uma Copa do mundo compromete o orçamento e os cofres públicos e aumenta o custo de vida nas cidades. A grana paga pelo contribuinte acaba nas mãos de pequenos grupos, e o mais estarrecedor é que os gastos previstos para a Copa de 2014 são de trinta bilhões de reais. As três últimas Copas do Mundo somadas custaram vinte e cinco bilhões de reais. Mais uma vez a conta não fecha.
Entendo que muita gente por aí torça contra a seleção brasileira, uma vez que ela se confunde com tudo que a FIFA trás atrelado. Mas, confesso que eu não torço contra, não sei se adianta torcer contra. Em 1966 a seleção perdeu a Copa com uma das piores campanhas da história e a ditadura militar não acabou por causa disso. Em 1970, quando capitalizou muito em cima da excelente seleção brasileira, a ditadura ganhou muito pouco com a vitória do Brasil. Numa época na qual um encontro de mais de quatro pessoas poderia ser considerado subversivo, os jogos da seleção serviram como desculpa para muitos encontros de grandes grupos, onde o assunto do futebol rapidamente caia na política. Culpar o torcedor é como culpar o usuário de droga. Se não der Brasil vai ganhar outro e tudo bem pra FIFA. O que não tá tudo bem pra FIFA é quando o Brasil se levanta pra gritar contra ela. Aí eu grito junto. For the game, against FIFA. Contra a FIFA por tudo que já disse aqui e pelo jogo porque um outro futebol é possível e eu mesmo não me aguento. Essa poesia que brota da várzea, das peladas de toda a quarta-feira desde a escolinha do Bueno (o ex-zagueiro do Bangu que me ensinou todo o pouco que sei de bola), passando pela quadra dos bombeiros da Gávea, o campinho do alto do Vidigal, os condomínios de luxo da Barra, o campo pelado do suburbano Siri Valente até as quadras do clube dos Macacos, do clube condomínio, ou da Quinta do Santo Inho, essa poesia me arrebata. O jogo que é o teatro da guerra, enfrentamento lúdico, charme da simpatia, sempre deixa em mim algo que é maior que a força destruidora dos grandes conglomerados corporativos. Pra mim o mundo se transforma com a poesia de um drible do garrincha vestindo as cores do Botafogo, com o Flamengo do início do século XX tornando-se popular por treinar na praia, para o povo, mesmo pra quem não tinha grana pra ser sócio, com a transgressão do Vasco, que justamente sendo o time da colônia portuguesa foi o primeiro a aceitar um negro no futebol brasileiro, com o pioneirismo apaixonado do Fluminense organizando o futebol no Rio de Janeiro, quando tudo era ainda embrionário. Existem histórias de resistência no futebol, um esporte que evoca a coletividade e que pode conciliar contrários. Lembro-me da Copa da Ásia de 2007 quando, mesmo arrasado por anos de guerra o Iraque foi campeão, tendo a frente um técnico brasileiro, Jordan Vieira, que assumiu e conseguiu organizar um time dividido entre Sunitas e Xiitas. Talvez eu seja por demais sentimental, mas me emociono com essas coisas. É por isso que comemoro, ainda que tímido, os gols dos jogadores da seleção. Um dia eles também foram garotos peladeiros como eu, como tantos outros. Comemoro como comemoro cada gol em campo de terra batida, cada drible em cima de areia fina, por cada um dos que jogam o futebol com amor ao jogo. Um amor que pode ter se perdido da seleção e dos grandes clubes, que a FIFA pode tentar roubar pasteurizando os estádios, que as megacorporações vampirizam, mas que segue vivo e pulsante quando a pelada de bairro acaba e todos se abraçam na comunhão soberana da mesa de bar.
Pra cima deles, porque o jogo só acaba quando termina!
Domingos Guimaraens é integrante do coletivo OPAVIVARÁ!, doutorando em Letras e colunista do ORNITORRINCO.
Originally published at ornitorrincozine.blogspot.com.br on 01/07/2013