RAÚL ZURITA — parte I
Eu não sabia do que se tratava quando entrei na Sala Verdi para o último dia de leituras do Mundial Poético de Montevideo. Dias antes, tinha comprado o livro Queridos Seres Humanos na ocasião do lançamento seguido por uma entrevista no palco da Sala Vaz Ferreira da Biblioteca Nacional para uma plateia essencialmente de poetas. Raúl Zurita não era nem um nome para mim, assim como de quase todos os poetas de tantas nacionalidades que pude conhecer naquele festival de 2013.
Pequena nota: O MUNDIAL POÉTICO DE MONTEVIDEO foi uma descoberta absoluta. Nunca tinha participado de um festival de poesia. Todos aqueles poetas do Uruguai, Argentina, Chile, Equador, Peru, El Salvador, Bolívia, Colombia, França, Estados Unidos, Espanha e até mesmo poetas do deserto da República Saharawi. me senti um menino pela primeira vez diante de algo espetacular, feliz por conhecer aquilo tudo, porém triste por perceber que o Brasil está tão distante do que acontece aqui ao lado.
Mas foi o Pedro Rocha, verdadeiro desbravador da América, que me alertou “Você não conhece o Zurita? Ele é o cara!”. E vi subir no palco aquele homem de 64 anos, belo, caminhando em direção à cadeira vazia que o aguardava. Passos serenos, pesados, o parkinson visível, uma pasta de couro de onde tirou uma pilha de papéis, no rosto a total concentração, e uma voz rouca, barítona, que penetraria no corpo como uma sinfonia.
Zurita sobe ao palco. “Tiene que escuchar el poema Canto a su amor desaparecido, es su grande hit” me disse o poeta chileno Héctor Hernandez Montecinos, com quem dividi o quarto no hotel e que depois se tornou um grande amigo.
No último dia, na última apresentação, o poeta começa sua leitura com sua voz estridente e calma e desesperada e linda. Auge do festival. Poema atrás de poema e o teatro estava em suspenso silêncio. Nenhuma respiração se ouvia diante daquele homem que crescia a cada palavra.
Trinta minutos ininterruptos de poemas que passavam por toda sua extensa obra, até que olha para a plateia e diz:
Canto a sua amor desaparecido
Ahora Zurita me largó ya que de puro verso y desgarro te pudiste
entrar aquí, en nuestras pesadillas; ¿tú puedes decirme dónde está mi
hijo?
A la Paisa
A las Madres de la Plaza de Mayo
A la Agrupación de Familiares de los que no aparecen
A todos los tortura, palomos del amor, países chilenos y asesinos
E foi aos poucos ganhando força. Aumentando o tom de voz a medida que as imagens do poema surgiam. Uma bolha se formara e estávamos todos lá, não havia mais como sair, e ninguém queria.
Fue el tormento, los golpes y en pedazos
nos rompimos. Yo alcancé a oírte pero la
luz se iba.
Te busqué entre los destrozados,
hablé contigo. Tus restos me miraron y yo
te abracé. Todo acabó.
No queda nada. Pero muerta te amo y nos
amamos, aunque esto nadie pueda entenderlo.
CANTO A SU AMOR DESAPARECIDO é um poema pertencente ao livro de mesmo título publicado em 1985. No meio da leitura, a sensação era de estar vivendo algo único. E ele ia:
El hombro cortado me sangraba y era olor raro la sangre.
Dando vueltas se ven los dos enormes galpones.
Marcas de T.N.T., guardias y gruesas alambradas cubren sus vidrios
rotos.
Pero a nosotros nunca nos hallarán porque nuestro amor está pegado
a las rocas, al mar y a las montañas.
Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.
Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.
Sua voz ficava cada vez mais desesperada, lírica, como se cantasse, de olhos fechados, contorcidos, a cabeça para cima, agarrado ao microfone com as duas mãos, como se fosse a última coisa que iria dizer na vida, já não havia mais fragilidade no corpo, não havia mais nada, era o poeta e o nervo exposto diante de todos.
Pegado, pegado a las rocas, al mar y a las montañas.
Pegado, pegado a las rocas al mar y a las montañas.
Quando terminou o poema, o último da leitura, uma menina que estava ao meu lado estava desolada, chorara a apresentação inteira e no final não tinha mais forças, ninguém tinha mais forças. O poeta tinha nos matado. O aplauso demorou alguns segundos para acontecer, era o tempo do raio e do estrondo, e o estrondo tinha sido ali. Todos aplaudiram por muito tempo, mas não pelo espetáculo, pelo show ou qualquer coisa parecida, todos aplaudiram a poesia em carne viva que ali era celebrada de maneira absolutamente preciosa.