RAÚL ZURITA — parte II
Mais ou menos um ano depois a coisa foi bem diferente. Zurita já era um poeta que conhecia e lia. Tinha virado já fator de extrema importância na minha vida assim como toda a descoberta da poesia contemporânea latino americana.
E estávamos novamente em um festival de poesia, eu, Pedro e Amora, com poetas de toda a América. Argentina, Chile, Equador, México, Peru, Bolívia, El Salvador e muitos outros. Desta vez em Santiago do Chile, com seus cachorros pelas ruas e aquela magnífica e imponente cordilheira.
Um ponto: A cordilheira do Andes é algo tão impressionante, tanto do avião, quanto das ruas de Santiago, que nos fez pensar sobre a tradição poética do Chile. A cordilheira dá uma estranha sensação de proteção, de isolamento, e de prisão ao mesmo tempo. Com aquelas pontas brancas, o limite que se pensa alcançar com os olhos, até a poluição dar uma trégua e revelar perspectivas ainda maiores, o rio que se forma na época do degelo e saber que a cadeia de montanhas corta todo o continente até a Venezuela, nos dá essa rara impressão do nosso próprio tamanho. O Chile é um país misterioso.
O POQUITA FE é um festival tradicional feito por poetas para “los que aman la poesía” como bem disseram os poetas e organizadores Héctor Hernández Montecinos e Paula Illabaca Nuñes, assim como tantos os outros que ajudaram na realização. O festival começou homenageando Antonio Silva e o nosso Ericson Pires, poetas que, nas palavras de Héctor “amaban tanto la poesía que dieron su propia vida por ella”.
E o cortejo de poetas percorreu diversos lugares da capital chilena. Centros culturais, bibliotecas, institutos, universidades e, sobretudo, bares. Os dias de leitura terminavam gloriosamente com um viño de honor.
Foram momentos preciosos. Ver o Pedro Rocha falando na fonte da Fundação Pablo Neruda, a Amora Pêra falando seu poema ‘Dinorah’ ao lado da grande Soledad Fariña no Centro Cultural España, ter visto o grande poeta chileno Diego Maquieira falar poemas em seu país depois de 15 anos. Conhecer os poetas bolivianos Clider John, Alex Aillón e Don Piti, a ginga do hermano argentino Juan Salzano, o peruano Martín Zuniga, rever a doce e imensa Paula Illabaca Nuñes, e dezenas de outros que formaram esse núcleo afetivo de poesia como nunca tinha visto antes.
Outro ponto: Logo que chegamos do Uruguai em 2013, fiz uma camisa da FIFI (Federação Internacional de Futebol Imaginário) com o Zurita jogando na lateral esquerda. Chegando ao Chile, no bar, apresentei a ideia de fazer seleções com poetas para os companheiros que simplesmente elevaram a brincadeira para níveis estratosféricos. Não só entraram no jogo como fizeram cada um sua seleção, de modo que a Copa América da FIFI estava completamente pronta. O Héctor, que convocou a seleção chilena, disse que Zurita não era lateral esquerdo, e sim, meio campo, com a 10, capitão do time.
No último dia, na última mesa, preparei duas homenagens: Uma ao centenário poeta chileno Nicanor Parra, com um poema, e outra ao Zurita, a quem daria a camisa número 6. E fiz as leituras com o Zurita na primeira fila. Embebido em honras, jamais pensei que poderia estar vivendo tal momento. No fim, dei a camisa ao poeta.
Logo depois, Zurita subiu ao palco, agradeceu a fala e disse que o Poquita Fe não poderia nunca acabar, porque se tratava de um festival de suma importância e que realiza-lo era obrigação dos jovens poetas chilenos. Zurita esteve em todas as edições do festival, sempre dialogando com as novas gerações.
Subiu as escadas, passos pesados, e de pé, começou a leitura. Eu não sei o que era, talvez porque já conhecesse ou algo assim, a sala ficou quente, comecei a suar, como se o estrondo fosse ainda maior. Zurita leu dezenas de poemas, com o mesmo vigor, a mesma verve, o mesmo nervo exposto. Leu obviamente Canto a su amor desaparecido, e continuou até o Canto de amor de los países.
Te recuerdas chileno del primer abandono cuando niño?
Sí, dice
Te recuerdas del segundo ya a los veinte y tantos?
Sí, dice
Sabes chileno y palomo que estamos muertos?
Sí, dice
Recuerdas entonces tu primer poema?
Sí, dice
E mais uma vez era surpreendido, pois da memória que guardara do Uruguai, Zurita terminaria no poema célebre, mas foi além. A atmosfera, que já estava exclusiva, rara, catártica, ficou ainda mais.
Dice sí, dice sí sí sí siiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiioooooooooooooooooo
ooooooooooooooeeeeeeeeeeiii
iiiiiiiiiiiiiiiiiiioooooooooooaaaaaaaaaaaaa
la la
la
la noche canta, canta, canta, canta, canta
Ella canta, canta, canta bajo la tierra
Aparece entonces
levántate nueva de entre los paisitos muertos
chilenos, karatecas, somozas y traidores
levántate y lárgale le nuevo su veulo y su canto
al que sólo por ti paisa vuela, canta y toma forma
sí devuélveselo a éste el más poeta y llorado
desaparecido del amor
palomo y malo
Sí, dice
Zurita cantava agarrado ao microfone como quem se agarra o último fiapo de vida. Cada vogal do poema era alongada como um uivo. O poeta no tinha matado mais uma vez. Choramos porque era lindo, porque era forte, porque era um momento único, porque era a poesia entrando em nossos poros. E quando parecia que não poderia acontecer mais nada de extraordinário, olho para o lado e vejo Zurita vestindo a camisa do Chile número 6 que eu lhe dera. Nos abraçamos, chorei de novo, era um transbordamento absoluto. Disse a ele que não entendia o porquê dele não ser conhecido no Brasil, tampouco traduzido, então ele me disse “Pedro, la poesía se hace con pasión, sin pasión no se hace poesía”.
E fomos todos para o glorioso viño de honor. Minha vida de poeta tinha mudado, eu tinha mudado, nós todos tínhamos mudado. Voltamos para casa com nossos corações atravessados por esse imenso espectro poético latino americano, com essa corrente ancestral do nosso continente, caminhando pelas ruas desse belo e misterioso país. Em Santiago deixei minha saudade, mas um dia volto para buscar.