A industriosa ambição de Ciro Gomes

Resumo em quatro partes da palestra de Ciro Gomes no dia 31/10/2017 em Salvador

Breno Fernandes
ORNITORRINCO site
11 min readNov 6, 2017

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O lugar

Foi a primeira vez que entrei na Faculdade de Direito da UFBA. Sendo um frequentador do campus de Ondina, um espaço de convergência entre diversos cursos, com variados perfis e hábitos, o ambiente me chamou atenção mesmo conhecendo os clichês sobre os códigos sociais dos estudantes de direito. Nunca vi tanta gente de roupa social fora de um casamento. Não vi pichações nem escritos no banheiro masculino ao lado do auditório. Em compensação, tinha um menino reforçando o gel no cabelo antes de voltar para o auditório. Há muito não via na UFBA uma maioria branca com a proporção que havia naquele auditório.

Então fiz uma prece ao santorixá do bom senso para que ninguém ali gritasse “Cirão da Massa” e emendei com uma fezinha para o santorixá da reputação imagética para que, se houvesse esse disparate, que nenhum vídeo comigo aparecendo em meio a ele fosse parar na internet.

Alguém gritou, lá pelo meio da palestra, mas não obteve adesão.

A palestra

Ciro falou por cerca de uma hora e depois respondeu a perguntas. Sua aula girou em torno do tema: a industrialização & a política institucional no Brasil.

Para Ciro, o Brasil fez, em cerca de 30 anos, o mais rápido e completo salto industrializante da história do capitalismo. De uma república predominantemente agrária até a Segunda Guerra Mundial, chegamos aos anos de 1980 com um parque industrial completo: da indústria de base à indústria tecnológica. O que melhorou consideravelmente nossa posição na divisão internacional do trabalho e nos colocou entre as principais economias do mundo, posto onde estamos até hoje. Um feito conduzido pelo Estado — como, aliás, para ele, sucedeu também nas principais potências, só que de maneiras distintas, citando a seguir o caso dos Estados Unidos, em que a indústria de tecnologia foi e tem sido impulsionada pela Casa Branca, com garantias de compra governamental a pretexto de segurança e defesa.

A implantação desse modelo, efetivamente, não foi fácil. Engendrou pelo menos três problemaços:

1) Político institucional: que gerou a ditadura;
2) Urbano: concentrando a maioria da população brasileira em menos de 1% do território (perdi minhas anotações, todos os dados errados desse resumo são de responsabilidade de minha memória);
3) Hiperconcentração de renda: que faz com que hoje seis brasileiros detenham o mesmo montante de 100 milhões de brasileiros, a metade da população praticamente.

Segundo Ciro, o modelo industrial construído no século 20 faliu na década de 1980. Para efeitos de comparação, contou ele, em 1980, Brasil e China tinham a mesma fatia de mercado internacional: 1%. Hoje, nós continuamos mais ou menos no mesmo patamar, enquanto a China…

Ele argumenta que o problema político, grave que era, fez com que deixássemos a economia de lado. Com a morte de Tancredo Neves, todas as forças políticas progressistas envidaram esforços para a manutenção da democracia nascente, e, nesse ínterim, a correção monetária foi sendo utilizada como instrumento de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, tornando desinteressante para estes que uma reforma imediata na economia fosse feita.

Quando fizeram a reforma econômica, foi no auge do pensamento neoliberal, dos anos de 1990, que definitivamente não era a solução para nossos problemas.

Ciro critica a continuidade da desindustrialização que essa política provocou com exemplos.

Trigo. O trigo é matéria-prima do pão de todo dia e da pizza de domingo. Mas o Brasil está longe de ser autossuficiente em trigo: importa a maior quantidade do que consome.

Petróleo. O Brasil exporta petróleo bruto e, como não tem uma indústria petroquímica autossuficiente, tem de importar refinados, como o diesel, a preço mais caro do que vende o barril de petróleo.

Para importar tudo isso, precisamos de dólares. Mas só conseguimos dólares com comércio internacional. E o que temos a oferecer ao comércio internacional se não temos indústria?

Por isso Ciro não demoniza o agronegócio. Ressalvando que ele é contra precarização das relações de trabalho, a degradação ambiental, a não participação dos pequenos agricultores nessa indústria e a política de campeãs nacionais, diz que não pode deixar de reconhecer que é o lucro do agronegócio — que precisa importar uma boa fatia do que precisa, como fertilizantes e maquinário — que está pagando nossa conta.

Ciro Gomes em palestra na UFBA (reprodução: Facebook)

Falando desse assunto, Ciro até sai da economia e vai para a sociologia. Para ele, a sua geração, que hoje está na casa dos 60 anos de idade, ainda pegou um modelo de satisfação subjetiva que estava bastante ligada ao plano da ação. De construir uma família a enfrentar o guarda da esquina, da arte à espiritualidade, a satisfação individual girava em torno de abraçar certas posturas de vida. Hoje, contrariamente, o consumo seria a marca de nossa realização. Por isso a economia nacional tem também de encontrar uma centralidade em nosso debate público.

Eu estou com Ciro nessa: por mais que as esquerdas universitárias façam críticas à ideia de nação, no curto e médio prazos, rechaçar ou ignorar a potência que ainda há nesse conceito, em vez de reinventá-lo, não está nos levando a lugar nenhum no plano econômico. Mas volto a Ciro.

Outra consideração histórica que ele faz tem a ver com o que nos permitiu dar o salto industrializante no passado: o próprio sistema econômico internacional. Juros baratos, pagamentos em prazos relativamente longos. Mas o modelo econômico mudou. O smart money de Wall Street rapidamente transfere bilhões de um canto para outro do mundo, nos deixando em situações constrangedoras, como a de elevar a taxa de juros a patamares altíssimos para poder conseguir financiamento. Em outras palavras, o crediário internacional de hoje nos leva a jogar o jogo da especulação, no qual sempre perdemos.

Feita toda essa retrospectiva, vieram suas propostas.

Ciro quer, simplesmente, recuperar a indústria nacional. Essa é sua meta de base, a diretriz de todas as outras movimentações políticas. Para isso ele entende que o Estado deve sim participar da economia, mas não há um jeito único de participação. Cada setor demanda uma performance.

Para exemplificar, ele menciona o desejo de montar 4 complexos industriais, que, juntos, conseguiriam render 100 bilhões à economia do país, mais ou menos 2/3 da atual dívida pública (gastos primários do governo):

1) Complexo do Petróleo & Gás — construção de refinarias para que não precisemos mais comprar derivados do petróleo em dólar, tornando-nos autônomos nesse setor.

2) Complexo do Agronegócio — por meio de crédito e renúncia, a ideia alegada é a de incentivar a produção interna dos insumos faltantes nesse setor.

3) Complexo da Saúde — da produção de fármacos à feitura de instrumentos cirúrgicos e de leitos de UTI, coisas que importamos também, a ideia alegada é trabalhar com incubadoras que impulsionem um novo empresariado, jovem e nacional, no setor. O Estado aí funcionaria como garantidor da compra, como os Estados Unidos em relação à tecnologia de defesa, abastecendo o sistema público de saúde com esses produtos.

4) Complexo da Defesa — esse seria mais nuançado, abarcando ações variadas a depender de que ponto da defesa se trate. Seu exemplo foi o da construção de satélites, que ele acredita que, com estímulo, a Embraer (que chamou de empresa praticamente privada) conseguiria desenvolver e encontrar saída que pague a conta do investimento.

Sua ideia para fazer esses complexos deslancharem, envolveria, entre outras ações:

a) a criação de um fundo soberano com cerca de 50 bilhões das reservas internacionais brasileiras;

b) reformulação de leis desvantajosas para a economia do país, como a lei de herança (que nos Estados Unidos e na Europa taxa em torno de 20–40 e tantos porcento, enquanto aqui, em 8%) e de propriedade intelectual (aqui, acusa FHC de a ter aprovado sem debate uma lei anacrônica, que obriga o país até a pagar patentes vencidas).

E foi mais ou menos isso.

As perguntas

O último bloco da palestra foi dedicado às perguntas do público. Comento alguns momentos.

Uma das poucas pessoas negras na plateia levantou a questão da desigualdade racial. A resposta de Ciro foi breve: ele reconhecia que a desigualdade social no Brasil tinha cor. Outra pergunta questionou a respeito das minorias de modo geral. Ciro, resumidamente, afirmou que, como progressista, não poderia conceber uma política em que a tolerância às diferenças e a liberdade de expressão não fossem um imperativo. E aí pediu licença para comentar o seguinte: disse que as forças progressistas estavam caindo na armadilha do reacionarismo. Que, como eles não têm projeto econômico defensável, sua maneira de cooptar a sociedade brasileira, que é majoritariamente conservadora, é pelo debate de costumes. E parece estar funcionando. Por isso, emendou, ele pedia que as pessoas presentes fizessem o esforço de levar os dados que ele oferecia em suas palestras espalhadas pela internet para o centro do debate. Até porque era onde o interesse comum entre progressistas e conservadores convergia: na melhoria das condições materiais do país.

Para ele, a audiência dada à reatividade da extrema direita se sustenta menos numa convicção nos valores desta ala e mais a um desencanto.

Ciro Gomes em palestra na UFBA (reprodução: Facebook)

Perguntaram como Ciro conseguiria lidar com um Congresso que fosse igual ao atual. Ele comentou que, historicamente, todo presidente contou com uma base de apoio majoritária em seu primeiro ano, e ele estava contando com isso. Ademais, pensava em usar mecanismos legítimos de plebiscito e referendo popular para pressionar o Congresso. Comentou também que as críticas ao presidencialismo baseadas numa comparação entre o nosso modelo e o norte-americano não faziam sentido haja vista as diferenças nas constituições, a deles sendo bem reduzida, e a nossa tratando detalhadamente de alguns assuntos da administração pública. Me pareceu um posicionamento crítico a essa parte da constituição.

Houve um momento curioso antes disso. Foi ainda na palestra, quando ele terminou uma linha de raciocínio dizendo, “Vou lá e faço”, o que rendeu uma salva de palmas da plateia — um comportamento recorrente — e um riso de professor de humanas em Ciro. Ele disse que era preciso amenizar aquelas palmas porque não deixava de haver um tom autoritário na sua própria fala. E emendou com um comentário que, aparentemente, era uma crítica velada ao autoritarismo de que o acusam. Comentou que há ultimamente um rechaço forte à autoridade. Mas que as esquerdas pareciam ter se esquecido de que a autoridade — pensada como delegação de responsabilidade e de tomada de decisão em meio às divergências — foi um dos instrumentos que tornou possível o processo civilizatório. Embora da autoridade decorresse o autoritarismo, quando longe do autoritarismo, a autoridade era um instrumento de produtividade social.

Não sei se nessa hora ou mais tarde, Ciro também mencionou a responsabilidade individual dos sujeitos, e trouxe a questão do ato de consumo. Falou algo mais ou menos assim: “Você tem que entender que às vezes é preciso comprar mais caro e um negócio até um pouco mais armengado para ajudar um irmão e sustentar uma economia nacional.” Seu único comentário que me pareceu romântico.

Considerações finais

Como cria do progressismo universitário pós-positivista, culturalista, sempre me incomodou entre os meus que o desejo de um discurso de revolução social, com o qual concordo, rechace ou ao menos marginalize a reflexão sobre estratégias institucionais de curto e médio prazo que sejam menos revolucionárias mas que, ao menos, criem condições de vida materialmente dignas.

O debate universitário nos centros influenciados pelos Estudos Culturais já faz algum tempo saltou para as micropolíticas, a política das relações sociais. E, em parte, me parece que foi por incompetência ou falta de vontade nossa de discutir economia institucional, num momento em que ela realmente ficou hipercomplexa, com a financeirização.

Exagero meu a afirmação acima, talvez. Há também uma questão de premissas teóricas e morais. A base teórica desse discurso universitário trabalha com a seguinte igualdade: relações sociais = relações de poder. É meio paradoxal, certo? Pensar as relações sociais como relações de poder pressupõe a ideia de que sempre haverá alguma espécie de desbalanço social. Como isso se coaduna com a luta pelo fim da categoria que chamamos de minorias? Não haveria sempre algum tipo de minoria, de grupo desprivilegiado, descontando-se o romantismo do braço do pensamento marxista que ainda vê o comunismo como possibilidade? Essas questões são pouco debatidas no entanto. Pelo menos na minha vivência. No geral, nos atemos às críticas às desigualdades já historicamente construídas: classe, gênero, orientação sexual e raça.

Lidar com economia institucional, me parece, é ter de acatar que as diferenças de classe vão continuar existindo, e elas de certo modo sustentam as outras três, ou alimentam as outras três. A questão, me parece, é que simplesmente ficar no âmbito das micropolíticas, sem ativa participação institucional — por exemplo, sem reflexões que trabalhem mesmo com alguma normatividade — , isso não leva a lugar nenhum.

Penso agora em como a redistribuição social proporcionada pelo boom das commodities e as políticas da era PT permitiram que outras mudanças, extraeconômicas, fossem feitas. Por exemplo, no âmbito das etnias, em se considerando que a desigualdade social também é uma questão de cor. O estranhamento que senti com a branquitude e a roupagem do auditório de direito decorre da minha convivência diária, há pelo menos 4 anos, com grupos estudantis muito mais plurais em tom de pele e em códigos de vestimenta (o que, por sua vez, está efetivamente conectado à questão de gênero). Isso foi possível não só pela política de cotas, mas também por auxílios financeiros como o bolsa-família e o projeto permanecer.

Redistribuir renda, por pouco revolucionário que pareça em comparação a outras revoluções, a mim me soa uma estratégia bastante eficaz de permitir que as pessoas tenham condições mínimas de fazer suas micropolíticas. Não é o suficiente — precisamos, por exemplo, de uma legislação que proteja as minorias — , mas é um excelente primeiro passo.

Não acredito que menos Estado crie as condições econômicas mais benéficas para o país, antes só mantendo a concentração de renda.

Fui a essa palestra para ver se, ouvindo Ciro por mais do que alguns minutos editados em programas, eu reiteraria a minha simpatia ou a rechaçaria. Saí de lá satisfeito com seus posicionamentos expostos.

A única coisa que me incomodou, nas quase três horas escutando-o, foi a ausência de uma menção às populações indígenas tradicionais, nossa maior minoria, as que são mais renegadas desde os primórdios dessa terra.

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