SANGUE E PORRADA NA MADRUGADA: TEM O CERTO, TEM O ERRADO E TEM TODO O RESTO
Na última sexta-feira 25/10/2013 um coronel da PM foi espancado em São Paulo e então, por fim, a presidente Dilma se pronunciou sobre a violência nas ruas durante as manifestações. Muita coisa aconteceu no país de Junho pra cá. Um fotógrafo ficou cego depois de levar um tiro de bala de borracha; um estudante foi arrastado para Bangu com provas forjadas; vários estudantes foram presos em flagrante, acusados injusta e ilegalmente de formação de quadrilha; jornalistas brasileiros e estrangeiros foram agredidos pela polícia; outro estudante levou um tiro de verdade numa manifestação; professores em greve apanharam sem piedade no centro do Rio de Janeiro; e até mesmo outros soldados, cabos e sargentos da PM se machucaram e foram agredidos. A presidenta ficou quieta.
Se Dilma governa para todos, por que só se manifestar quando um Coronel é espancado? A patente alta, o bigode grosso, tem algo com isso? Estendo essa profunda insatisfação aos governadores Geraldo Alckmin, de São Paulo, e Sergio Cabral, do Rio de Janeiro, que são os que comandam a polícia militar em seus estados. Os dois têm se esquivado do tema empurrando a responsabilidade para os chefes da polícia e dizendo, superficialmente, que abusos serão investigados. A violência policial é uma violência de Estado e os governadores são responsáveis por cuidarem de suas polícias. Estes políticos foram eleitos democraticamente, por voto direto, mas isso não é salvo conduto para fazerem o que bem entendem com a cidade. Ainda que possamos entender que as UPPs representam algum avanço, não podemos deixar de apontar os erros e abusos da polícia. Fecho mesmo é com a arquibancada do Maracanã que sempre gritou: “Puta que pariu / A PM é a vergonha do Brasil”. Acho que a desmilitarização da polícia é o único caminho possível para que a repressão violenta termine.
Se Dilma governa para todos, por que só se manifestar quando
um Coronel é espancado? Estendo essa profunda insatisfação
aos governadores Geraldo Alckmin e Sergio Cabral, que são
os que comandam a polícia militar em seus estados. A vio-
lência policial é uma violência de Estado.
Mas também não estou do lado daqueles que espancaram o coronel, não me sinto feliz nem mesmo vingado ao ver aquelas imagens. A cena foi mesmo forte, o sujeito leva bordoada de todo o lado, fica todo quebrado e sai, amparado por seu motorista armado (que também é policial), pedindo para a tropa não perder a cabeça. A frase é dúbia. Não perder a cabeça é: não debandar, frente à falta do líder; ou segurar e não massacrar os manifestantes? O pronunciamento de Dilma, repudiando a agressão ao Coronel me parece até justo, sou um pacifista e jamais espancaria qualquer um daquela maneira ou incitaria alguém a fazê-lo. No entanto, ela me parece aquele juiz que deixou o couro comer o jogo todo e quando a coisa já estava fora do controle tentou puxar um cartão vermelho pra ver se controlava os ânimos. Mas, quando uma coisa vale para um lado e não pro outro, não há jogador em campo que se acalme, a torcida inflama junto e quero ver segurar a massa.
Eli Simioni /CPN/Sigmapress
É mentira dizer que Dilma não se manifestou antes. Depois da enorme manifestação do meio do ano, que levou mais de um milhão de pessoas às ruas, a presidenta fez um pronunciamento em rede nacional reconhecendo a legitimidade da voz das ruas e sugerindo alguns tópicos para uma profunda reforma política do país. Nada do que ela falou sequer começou a acontecer. Não adianta jogar toda a culpa na presidenta. Eu sei que ser síndico já é uma tarefa hercúlea, imagina ser presidente do Brasil, com todos os jogos de forças que envolvem o país? Fato é que o pessoal continuou nas ruas e o que se acentuou foi a violência policial e as táticas de defesa, também violentas, dos Black Blocs. O que mais me impressiona nisso tudo é que a imprensa tradicional e até as mídias alternativas parecem centrar o debate neste confronto. O Fla x Flu Black Blocs X PM é o que movimenta as discussões. A ladainha de que as manifestações começam pacíficas, mas depois são invadidas por mascarados baderneiros é interminável. O papo de que tudo é culpa do P2 infiltrado também não cessa.
Os confrontos Black Blocs X PM me parecem os galhos de um sem fim de conflitos que têm um tronco forte, rijo e cheio de raízes no país. O centro da questão está dentro deste tronco e nessas raízes, a briga nos galhos muitas vezes não deixa a gente olhar e entender de onde essa árvore nasce. Por outras vezes expõe algo que está bem enraizado.
Há poucos dias vi um debate sobre as manifestações de rua e as novas mídias. Um editor de O Globo e representantes de mídias alternativas, como a Ninja, entraram numa acalorada conversa sobre como cada um via o que estava acontecendo no país. Os representantes das mídias alternativas acusavam o jornal de manipular informações e mentir. O jornalista do Globo se defendia dizendo que eles viam ali coisas que não estavam ditas e que o jornal era imparcial. Há realmente brechas no Globo, normalmente o último parágrafo das matérias cita um abuso policial, mas sua manchete de capa e legendas de foto são um tanto tendenciosas. Tão tendenciosas quanto chamar os manifestantes que confrontam a polícia aqui no Brasil de vândalos enquanto um grupo de italianos enfrentando a polícia em Roma são jovens descontentes. Talvez devêssemos ler o jornal de baixo pra cima, da direita pra esquerda, mas não é assim que acontece e as manchetes nas bancas de jornal acabam falando mais do que o recheio. O Globo dessa segunda-feira 28/10 estampa na capa que “Agressões reduzem apoio aos protestos” apenas no último parágrafo da página 4, aos 47 do segundo tempo da matéria, há uma opinião contrária a isso. O monopólio da informação me parece um debate fundamental. Não acredito em jornalismo imparcial, não acredito em imparcialidade, por isso um só grupo dominar a propagação da informação é algo muito perigoso. Eles podem dizer o que quiserem, mas não podem ser os únicos. Não são os únicos, mas são o único com todo esse poder nas mãos. O jornalismo colaborativo, a descentralização das mídias versus o monopólio são questões deste tronco enraizado que a briga das ruas transformou em debate público. Ponto pra rua.
Ações interessantes têm tomado corpo dentro desse debate. Um vídeo do Rafucko chamado “Imagina no Carnaval: Uma transmissão mais alegre do maior show da Terra: as manifestações populares!” faz uma paródia de uma cobertura de carnaval da rede Globo no meio das manifestações. Todos os clichês da transmissão carnavalesca estão ali. A Mulata GloboBloc, o folião manifestante, O Black Bloco, o comentarista, a repórter, a ala da PM representando a repressão e até a contagem das notas dos jurados. O vídeo é maravilhoso.
Outra ação que gostei muito foi o lançamento do jornal O Lodo. Com design e layout idênticos ao de O Globo o jornal trabalha por inversão, ironizando o lugar hegemônico do veículo e esgarçando o limite dos interesses que estariam por trás de suas publicações. Estas ações me lembram do coletivo The Yes men. Americanos alucinados que já publicaram uma edição do The New York Times com uma matéria de capa anunciando o fim da guerra no Iraque. Uma tiragem de 100.000 exemplares foi distribuída em Nova York numa ação pacífica que me parece profundamente contundente.
Acho todas essas ações super revolucionárias, tenho apenas algo a sugerir para seus desdobramentos. Do vídeo de carnaval aos dois jornais citados há um pastiche destas instituições que esses trabalhos intentam abalar. Assimilar sua estética e jogar com seu avesso ou com a redução ao absurdo para evidenciar algo é um caminho. Mas esse caminho não deixa de recolocar a estética em questão como um padrão, correndo o risco de puxar seu tapete e ao mesmo tempo devolvê-la ao topo como lugar da verdade. A publicação O Lodo queria responder diretamente à capa do jornal O Globo do dia 17/10. Claro que aí se justifica a tática escolhida e seu resultado é matador. Apenas lanço aqui uma reflexão em conjunto com seus realizadores: que outro jornal é possível, que outra estética é possível? “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária” já ensinou Maiakovski. Penso que esse era o questionamento inicial do vídeo e do jornal. E se o pessoal está produzindo coisas assim pode, com certeza, ir muito além.
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Voltando aos confrontos Black Bloc X PM, não vou ficar em cima do muro. Não sou a favor da tática dos Black Blocs. Sou um admirador de muitas ideias anarquistas, principalmente das Zonas Autônomas Temporárias de Hakim Bey, mas sou antes de tudo um pacifista convicto e não compactuo com a ideia de uma espécie de brigada (quase para militar) mesmo que ela esteja a serviço dos manifestantes só para protegê-los da violência policial. Vi cartazes por aí que diziam “atrás dessa máscara há mais do que carne, atrás dessa máscara há ideias e ideias são a prova de balas.” Ideias são mesmo a prova de balas — escudos, paus e pedras não. Mesmo assim entendo o surgimento dessa tática. Se eu tivesse vivido nos anos de chumbo da ditadura militar, não iria me juntar ao pessoal da luta armada, não acho o mais inteligente e eficiente querer derrotar um exército no campo onde ele é mais forte. Mas a partir do momento em que o poder político de um país é tomado por meio das armas, eu entendo o pessoal achar que é esse o caminho para retomá-lo em nome da democracia ou seja lá em nome do que for. Da mesma forma que quando a violência policial tenta abafar um grito legítimo da população, entendo que apareçam grupos que achem possível garantir que este grito seja ouvido reagindo à agressão com mais agressão. O que quero dizer com isso é que por mais que se repudiem as táticas dos Black Blocs, eles não podem servir para a legitimação da brutalidade da ação policial, nem para legitimar a criminalização dos movimentos sociais. A tal proibição das máscaras em manifestações é outro ridículo que se quer impor através da construção de uma imagem do demônio Black Bloc, não é por aí. Bem como a luta armada não podia servir para se ter complacência com a boçalidade de uma ditadura militar.
Vivemos tempos muito distintos daquele período sombrio de 1964 a 1985, muito distinto do que foi a explosão do Maio de 68 na França. Mas paralelos podem ser traçados, porque a história não caminha numa linha evolutiva reta e contínua, ela é uma teia bem enredada em cordas de muitas dimensões pelas quais podemos atravessar transtemporalmente. Por isso posso lembrar do não vivido e de Daniel Cohn-Bendit um dos líderes do Maio de 68. Nascido na França de pai alemão, era pelas leis francesas — que adotam o jus sanguinis e não o nosso jus soli — de nacionalidade alemã: decretado “indesejável” pelas autoridades, corria risco de expulsão. Foi quando se deu uma manifestação emocionante: milhares desfilaram pelo Boulevard Saint Michel gritando “Somos todos judeus alemães”, “Somos todos indesejáveis”!
Então mesmo sendo contra qualquer tática violenta, ação direta, sangue e porrada, quando vejo alguém sendo chamado de vândalo, quando há violência policial contra qualquer manifestante, quando manifestantes são presos para que se calem, não consigo esquecer os que desfilaram no Boulevard Saint Michel gritando “Somos todos indesejáveis”.
Domingos Guimaraens é integrante do coletivo OPAVIVARÁ!, doutorando em Letras e colunista do ORNITORRINCO.
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Originally published at ornitorrincozine.blogspot.com.br on 29/10/2013