Sobre o Futuro

Thiago Barbalho
ORNITORRINCO site
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5 min readDec 21, 2017

Quem sabe o desenrolar dessa nossa espécie, cuja permanência no mundo deverá ser tão breve quanto a de qualquer outra forma de vida em transformação constante, vá culminar no arrebatamento de ser feliz exatamente pelo que se é

Tenho tanta incapacidade de me acostumar com o espanto de estar vivo, de saber que nós humanos somos tão inquietos e insatisfeitos quanto inexplicáveis, que passo muito tempo pensando sobre isso, mesmo sabendo que nunca encontrarei uma resposta. Na verdade, o que me move é o espanto da autoconsciência, e não a ilusão de que encontrarei uma resposta que lhe dê trégua.

Esse espanto me faz perguntar se vamos ser sempre assim, inquietos, estranhos, autoconscientes, insatisfeitos, ou se a humanidade é uma ponte longa e lenta para chegar a um novo estado de vida. O que vai surgir logo depois que o homo sapiens e suas agonias virarem só mais um ponto na linha que vai da primeira forma de vida até sabe-se lá onde na jornada ampla da consciência? Será que vamos deixar de ser tão insatisfeitos? Ou vamos deixar de tentar domar essa insatisfação? Será que a seguir virá uma etapa ainda mais potente e feliz dessa espécie, com seres mais conscientes, comunitários, mais capazes de lidar com o mundo e em viver na alegria do instante, uma alegria que não mais aceitará ser adiada para o dia em que chegarmos a algum lugar que não este aqui, agora? Mas então o que falta para aprendermos a lidar de maneira alegre com tantas contradições e nos transformarmos no futuro que desejamos para nós mesmos? Eu não tenho a menor ideia.

O meu poeta favorito, Friedrich Hölderlin (1770–1843), parecia se atrair pela ideia do presente como preparação para um futuro luminoso. Ele dá a entender, em diversos poemas seus, que por enquanto só às vezes, por pouco tempo, em ímpetos explosivos, o humano suporta o arrebatamento de quem abraça a vida inteira, tal qual é, com suas contradições, inexplicações e desconhecimentos. Esse ímpeto alegre é, segundo o poeta, divino — mas é divino no sentido de que o sujeito que experimenta essa sensação descobre em si mesmo um pedaço do eterno, do maior, do mais que humano, justamente quando percebe que a máquina cósmica que o move é também aquilo de que ele é feito. Em outras palavras, para Hölderlin a entrada para a alegria total está na consciência de que fazemos parte da totalidade. É como se a alegria do pertencimento, o êxtase de si, rebentasse no humano quando ele se dá conta de que tem, em sua própria constituição, matéria do que faz o todo ser o que é.

Como podemos experimentar esses ímpetos de pertencimento arrebatador dois séculos depois de Hölderlin, agora que suas ideias românticas foram combatidas por acontecimentos trágicos e cinismos sem fim? Fácil. Os instrumentos estão aí, basta escolher o que lhe tocar melhor: transe religioso, plantas psicoativas, substâncias lisérgicas, meditação, viagens ao coração da natureza, respiração holotrópica — qualquer uma das práticas humanas que alteram a nossa percepção mais banal e nos abrem para a constatação física de que, se existe algo de sagrado no mundo, esse algo está também em nós.

Aí, o espanto revelador de estar vivo faz com que sejamos arrebatados pela certeza, ainda que breve, de que somos o máximo do que podemos ser. A epifania, o êxtase lisérgico, a experiência mística, são capazes de fazer não só pensar, mas sentir, por um rápido período, que mesmo as sensações humanas, suas contradições e inquietações, seus tédios e seus fracassos, são também parte de um universo que não tem opção a não ser nos acolher à sua maneira, porque nos pôs dentro dele.

Mas o que mais me intriga na visão de Hölderlin é a ideia de que o humano ainda não está pronto para viver isso em tempo integral. Um dia poderemos estar? Por enquanto, a epifania, o êxtase, a chapação, o gozo, ou como queira chamar a experiência de arrebatamento extático, não demora muito, passa — e ainda bem que passa, porque o nosso corpo precisa voltar a agir em busca de suprir suas necessidades de sobrevivência. Por outro lado, o risco que esse breve gozo deixa é o de voltarmos à vida comum achando que aquela alegria total não passava de um delírio — feito um trago num cigarro de maconha que, depois de te dar várias epifanias hilárias, te põe de volta à vida comum achando que todas as suas conclusões não passaram de um delírio divertido. Mas e se o delírio tiver sido, ele sim, uma alta dose de lucidez? Se a diversão, o riso, for a resposta sábia da nossa mente à sua própria autoconsciência?

O que fazer depois que uma alegria tão boa e breve passa e nos vemos de volta ao lento suceder da vida humana e seus dramas? O que esses estados alterados de lucidez deixam aos mais atentos é a intuição de que devemos nos desenvolver para nos tornar uma espécie em que a alegria sem limites caiba em nós por mais tempo — que ela dure. É como se intuíssemos que o futuro que queremos produzir é aquele que Hölderlin previu.

Quem sabe o desenrolar dessa nossa espécie, cuja permanência no mundo deverá ser tão breve quanto a de qualquer outra forma de vida em transformação constante, vá culminar no arrebatamento de ser feliz exatamente pelo que se é?

Estamos em preparação para alguma coisa chamada futuro e que nem sabemos o que é, e ainda que para Hölderlin pareça certo que o futuro será uma grande realização do humano, parece que essa realização definitiva dependerá da nossa força para suportar que merecemos ficar alegres por inteiro, inclusive com nossas insatisfações. Para isso, precisamos treinar o corpo: para o êxtase totalizante, para o conhecimento de si, para os modos de adquirir uma empatia genuína, para a experiência do inteiro. Seja na meditação, no silêncio, na dança; seja na ingestão de enteógenos, na crise de ansiedade pelo espanto diante do tempo. Seja como for, uma coisa é certa: estamos cada vez mais capazes de tomar consciência de nós mesmos, interessados em nos realizar e lidar com nossos impulsos e nossos limites, com o fato de que conhecer os próprios limites é já se expandir. Isso quer dizer que deixaremos de sentir tristeza, desânimo, discórdia, ciúme, rancor, ou que vamos conviver melhor com isso? Ou isso quer dizer que vamos nos deixar arrebatar por experiências de prazer despersonalizado, sem os embates do ego, como numa ingestão destemida de ayahuasca? O que será de nós ainda não tem nome, mas poderá ser bom.

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Thiago Barbalho
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“Um homem bom“ (Iluminuras, 2017), “Thiago Barbalho vai para o fundo do poço” (Edith, 2012) e “Doritos” (Vira-Lata, 2013). thiagobarbalho.com