Suave coisa nenhuma — #agoraéquesãoelas

Pedro Lago
ORNITORRINCO site
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3 min readApr 11, 2016

por Bruna Pinna

Em algum planeta bem distante, é possível que a violência entre gêneros seja algo comparável ou equivalente. Aqui na Terra, ainda está pra aparecer o homem que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua, ou que foi parar desacordado num beco desconhecido depois de ser violentado por um grupo de mulheres, e ao chegar na delegacia ainda ouve da delegada: “Quem mandou tirar a camisa?”

Eu não tenho muitas certezas e nem acredito em verdades que duram muito tempo. Mas falo aqui da Terra. E entendo que temos em mãos uma espantosa máquina de guerra. Que nos faz querer nos livrar da permanência e enfrentar temperaturas geladas ou incandescentes. Algo nos impediu de respeitar a constância e ir buscar a turbulência.

O trabalho político já não é mais da ordem do discurso ou da ideologia, mas das afetações. Com inteligência e conectividade, criamos modos de organizar uma resistência pacífica, mas totalmente obstinada e inflamada. O método é de propagação, proliferação, contágio.

Acabamos de ver um redesenho da sensibilidade coletiva fazer surgir um tsunami que atravessa e transversaliza toda uma percepção social com cheiro de mofo.

Depois de certa gororoba de estímulos insuportáveis, ocorre uma mutação no ambiente. Sobretudo no meio ambiente mental. Com uma força tanto política quanto poética, a Mulher — a mãe, a filha, a filha da mãe, a puta, a filha da puta, a sua, a minha, a deles, aquela — finca um novo território. Tivemos nossa identidade extraviada. Somos todas uma só. Ou somos todas, nós todas. E eu que nem sei quantas sou, desejo me encontrar com outro número incontável de muitas, sem desperdiçar as condições favoráveis de temperatura e paixão.

E de repente tudo se enxerga. As manchas no teto, as rachaduras na parede. A corrente já enferrujada é arrancada do depósito de memórias constrangedoras e empoeiradas e vai sendo arrastada daquele silêncio no volume máximo.

Protesto, pronúncia, proeza. Surge uma multidão de movimentos sinuosos. Fértil e farta. Uma multidão arisca e envolvente que acolhe e agasalha, mas também amarra e arrocha. Entra forte, marca em cima e não deixa o jogo correr solto. Joga, atira e arremessa. Arrasta, reboca e rebola. É musicada num batuque, num chacoalhar de ossos, num pêndulo capaz até de embalar nenéns com um vai-e-vem que desfralda todo mundo que olha em volta.

As rimas, as métricas, as sílabas, tudo feito na medida para aborrecer. Um grito que desacata, mas não desafina. Meio prece e meio pranto também. A riqueza dessa multidão é de uma potência inesgotável. Intimidade instantânea. Poder esparramado, rizomático, outra geografia.

A resistência dos gestos poéticos e anônimos, sem privilégio, sem liderança, a política através de uma lógica do compartilhamento. O mal-estar foi dividido, e por isso estamos aqui. Há algo de muito errado com a vida individual das mulheres todos os dias, mas principalmente com a vida social da qual fazemos parte.

E é aí que a luta pelos direitos das mulheres traz junto à luta pelo direito à cidade. Porque é para o espaço público que vamos levar aquilo que nos parece mais sufocante e urgente de ser formulado e assim, produzir novos possíveis em condições concretas de pensamento e ação.

Agora, o porquê disso tudo é todo um recheio que precisa ser escutado. E estamos recentemente experimentando uma escuta na qual o próprio ouvido nem é necessariamente a principal parte do corpo estimulada e acionada. Essa estranha escuta põe em exercício partes do corpo inusitadas. Escuta-se com estômago, com a pele, com a nuca, com a saliva, garganta, espinha. Uma escuta que vem lá das profundezas da terra, ou quem sabe do espaço sideral. Uma escuta-acontecimento. Dá até pra ficar meio zonzo.

Mas aqueles que insistem em achar que a dor do resto do mundo ou é piada ou é exagero, já que não atinge o próprio corpo ou o próprio bolso, podem correr o risco de permanecerem surdos ainda por algum tempo, e nem vão perceber que o mundo lá fora já mudou. Apesar do planeta ainda ser o mesmo.

Bruna Pinna é psicóloga clínica.

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Pedro Lago
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Poeta e editor. Publicou os livros de poemas: Corpo Aberto; Saci; Cortejo; Roma Canudos Radial Oeste, Corvo, Travessia e Corsário