Um Congresso “Xou da Xuxa”

Em votação que parou o Brasil neste domingo, os deputados que votaram “sim” pela continuidade do processo de impeachment da presidenta Dilma decidem esquecer o argumento que embasa juridicamente o processo, assumem que tratam a política como “negócio familiar”, mandam beijo para os parentes e comportam-se como se seu interlocutor fosse a Xuxa e não o povo brasileiro.

Gabriel Camões
ORNITORRINCO site
7 min readApr 18, 2016

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Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil (17/04/2016

Não há nada para comemorar em relação ao que aconteceu na Câmara dos Deputados neste 17 de abril de 2016. Nada. Embora ontem tenha sido um dia de festa e de celebração para muitos, a verdade é que todos nós perdemos. Embora existam aqueles que ingenuamente acreditam que foi um passo em direção ao fim da corrupção ou que o Brasil enfim irá melhorar, não há o que comemorar. Embora a imprensa brasileira, em especial a Rede Globo, tenha tratado a cobertura deste episódio político como um grande espetáculo, uma final de Copa do Mundo ou como um dia de desfile das Escolas de Samba na Sapucaí, não há o que comemorar.

A imagem do deputado Wladimir Costa (SD-PA) soltando (pela terceira vez) um rojão de confetes na hora de dar seu voto “Sim” pela continuidade do processo de impeachment é emblemática, pois simboliza claramente o que uma maioria de parlamentares estava fazendo ali ontem: Brincando. Me espanta o simples fato dele ter comparecido ao plenário. Até porque o deputado carrega o título de parlamentar mais faltoso das sessões em 2015. De um total de 125 sessões, ele não esteve presente em 105, sendo 93 delas justificadas com atestados médicos relacionados a intervenções cirúrgicas em sua coluna vertebral. Talvez pelo “peso” da culpa que carrega nas costas.

Outro dado curioso é que Wladimir teve, no início de 2016, seus bens bloqueados pela Justiça do Pará. Ele é acusado, junto com seu assessor Ildefonso Augusto Lima Paes, e com o servidor da Secretaria de Estado de Esporte e Lazer (Seel), Emersom Gleyber Leal de Souza, de liderar um esquema de desvio de recursos a partir de um convênio fechado entre uma ONG que lhe pertence e a Secretaria Estadual. Ao votar “Sim” na tarde de ontem, dedicou o voto a sua “mãezinha”, aos seus filhos, ao povo do seu estado natal e disse que iria “cassar o Brasil em nome do Pará”. Isso mesmo. Ele disse “Cassar o Brasil”.

E no fim da sua breve fala, logo antes de estourar novamente os seus confetes, gritou efusivamente como se estivesse numa boate, “quem vota sim coloca a mão pra cima”. Faltou só colocar uma música de fundo e a luz estroboscópica. Num contexto que não significasse um tiro na nossa Democracia, um golpe contra a constituição, um atentado ao Estado Democrático de Direito, a situação poderia até soar engraçada. Mas, definitivamente, não é esse o caso. Repito: não há o que comemorar.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil (17/04/2016)

Por sinal, como muito se comentou nas reportagens de cobertura do ato e também nas redes sociais, dedicar o voto ao pai, a mãe, aos filhos, ao cachorro, ao papagaio e ao vizinho foi uma tônica que permeou os maioria dos discursos de parlamentares que votaram “Sim”. Raríssimas exceções pontuaram as tais “pedaladas”, razão essa que justifica a abertura do processo e que fundamenta juridicamente todo o documento , mas que ontem ficou em segundo plano nas vozes de parlamentares que se comportaram como se estivessem diante de Xuxa e não diante do Brasil.

Como bem disse a jornalista María Martín, no artigo “Deus derruba a presidenta do Brasil”, publicado no El País, “lembraram os parlamentares aos telespectadores de Xuxa que aproveitavam sua participação ao vivo no programa para cumprimentar eternamente a mãe, o marido, a amante o primo, o enteado, o vizinho, os amigos e o porteiro”. Foi revelador assistir a centenas destes deputados confundindo e misturando sua vidas particulares com o dever público. Uma lição para nós eleitores ter acompanhado o comportamento dessa legislatura que elegemos. Não esqueçamos, pois, que vimos eles assumirem, na nossa cara, que governam prioritariamente para si e para suas famílias. Suas falas eram recheadas de “meus” e de “minhas”.

Por ser impossível sustentar um argumento plausível para justificarem seus votos em favor do prosseguimento do impeachment, evidenciando que integravam o elenco de personagens desta farsa que se concretizou no Congresso ontem, a figura de Deus e dos parentes foi evocada diversas vezes no dia de ontem. Ao ponto do deputado Marcelo Álvaro Antônio (PR-MG), tempos depois de ter votado, retornou ao microfone para dizer: “Só corrigir aqui uma situação: queria mandar um abraço, eu não mencionei meu filho, Paulo Henrique. Paulo Henrique, é para você meu filho! Um beijo!”.

Quase no fim da votação, quando o resultado favorável ao prosseguimento do impeachment já estava mais do que consolidado, o deputado Eduardo da Fonte (PP-PE) pediu para que seu filho votasse em seu lugar, o que não foi permitido, pois isso era contra o regimento interno da Câmara. Foi constrangedor. Teria sido ainda mais se ele tivesse sido atendido em seu pleito e o jovem herdeiro tivesse proferido a palavra “sim” em seu lugar.

Há um voto, porém, que simboliza a farsa desta votação. Com uma bandeira do Brasil nas mãos, a deputada Raquel Muniz (PSD-MG) fez questão dedicar o voto ao seu marido, Ruy Muniz (PSB-MG), atual prefeito da cidade mineira de Montes Claros, como exemplo de gestor público. Pulou. Gritou. Chacoalhou a bandeira e repetiu “sim”, “sim”, “sim”! Na manhã de hoje, a Polícia Federal prendeu preventivamente o seu marido por suspeita de corrupção. A investigação apura fraudes em licitações na área da saúde.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil (17/04/2016)

O excelente artigo da colega María Martín, que já citei acima, é certeiro e encerra a questão ao analisar o comportamento dos que disseram “sim” na votação de ontem: “A defesa da família, da propriedade, de Deus e da ordem em mãos dos militares mostraram a verdadeira foto do Congresso mais conservador desde 1985 sugerindo, de passagem, que ninguém leu o relatório com os fundamentos jurídicos que justificariam o crime de responsabilidade para a queda de Dilma — ou, pelo menos, ninguém se esforçou em demonstrá-lo. Raro foi ouvir uma dedicatória à qualidade da educação, à saúde, aos desempregados ou às minorias em favor do “sim”.”

Vestígios das “capitanias hereditárias” e do “Coronelismo” ainda contaminam o nosso Congresso Nacional. Nunca nos livramos dessa atmosfera da política como um “negócio familiar”. A eterna presença das Oligarquias, que transformam política em profissão, está mais do que evidenciada na repetição dos nomes e dos sobrenomes “Filho”, “Jr.”, “Neto” e até “Bisneto”, como é o caso do deputado Arthur Virgílio Bisneto (PSDB-AM). Não é surpreendente, portanto, que suas ações tenham como favorecidos os seus parentes e não o povo brasileiro. Há um sentimento por trás daquelas falas de que quem o colocou ali foi o pai ou o avô e não os seus eleitores. E é a mais pura verdade.

Uma pesquisa feita pela ONG Transparência Brasil revela que 44% dos deputados federais e 64% dos senadores são parentes de outros políticos que já ocuparam cargos eletivos. Entre parlamentares com menos de 30 anos, a taxa é de 78%. O revelador estudo pode ser conferido aqui . É importante pontuar que ele tomou como base a Câmara eleita em 2010 e o Senado do pleito de 2006. Logo após as eleições de 2014, a mesma ONG divulgou outro levantamento que concluiu que 49% dos deputados federais eleitos no último pleito tinham pais, avôs, mães, primos, irmãos ou cônjuges com atuação política — o maior índice das quatro últimas eleições.

Um texto publicado em fevereiro deste ano no Congresso em Foco revela ainda um estudo feito na Universidade de Brasília (UnB) que vai na mesma direção. Destrincham e investigam parentescos que remontam aos períodos anterior à proclamação da República, mostrando e comprovando a existência de famílias no poder há cerca de 200 anos.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil (17/04/2016)

Ontem mesmo, ao fim da votação, cheguei a comentar nas redes sociais que temos hoje, e tivemos sempre, um Congresso composto por parlamentares majoritariamente homens, brancos, ricos e herdeiros de uma tradição da política como um espaço de poder e não de transformação. São, em sua maioria (como revelam os estudos acima), filhos, netos ou irmãos de outros políticos iguais, que governam para si próprios e para suas famílias.

Podem ter a representatividade numérica pelos votos que conseguiram atingir nas urnas em seus currais eleitorais, com campanhas milionárias financiadas com a própria fortuna ou com as doações generosas dos seus pares. Eles são devedores desse dinheiro e dessas pessoas/empresas que investiram em suas campanhas. Corre a suspeita inclusive de que jatinhos foram oferecidos por empresários financiadores das suas campanhas para que ninguém faltasse a votação de ontem.

Pois os 367 parlamentares que ontem votaram “sim”, votaram para essas pessoas. Foi um “sim” para estas empresas. Um “sim” para o dinheiro que financiou suas campanhas. Um “sim” para os jatinhos à disposição. Um “sim” pela continuidade da sua família no poder. Um “sim” pelo destituição de uma mulher honesta. Um “sim” em desrespeito ao resultado das urnas. E a culpa é toda nossa. Fomos nós que demos o “sim” a eles.

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