Um lugar para chorar

Numa cartografia afetiva do Rio de Janeiro, não resta dúvida: Botafogo é o melhor bairro para chorar

Julia Wähmann
ORNITORRINCO site
4 min readMar 24, 2016

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Um terço da vida a gente dorme, um outro a gente fica parado na Rua São Clemente. Só isso já seria motivo suficiente para chorar em Botafogo mas, não satisfeita, resolvi fazer análise no bairro. Uma vez por semana cumpro o ritual de estacionar a uma quadra do consultório, comer um saco de pipoca a caminho, eventualmente comprar itens para a casa na Amoedo ou no Mundial e esperar a minha vez num sofá amarelo enquanto repasso mentalmente tudo o que quero dizer e todos que quero xingar no divã. À saída, invariavelmente, choro, e não é qualquer coisa: choro potes.

Gosto de chorar. Gosto de músicas que falam de choro (“Cry me a river”), de livros que tratam do assunto (A história do pranto, Alan Pauls) e concordo com quem diz que todos deveríamos chorar mais. Se não por motivos concretos, ao menos serviria para evitar os eventuais constrangimentos de chorar em público e/ou sanar os impulsos que alguns têm em explicar para quem quer que seja o motivo de suas lágrimas.

Uma enquete no Yahoo respostas me tranquiliza: a maioria das pessoas tem vergonha de chorar em público. Uma conversa com o meu melhor amigo me apavora: “Eu choro e ponto.” Uma lista na WikiHow (!) me ensina 25 truques (divididos em 5 categorias) para evitar chorar em público.

Gosto de chorar. Gosto de músicas que falam de choro, de livros que tratam do assunto e concordo com quem diz que todos deveríamos chorar mais.

De uns tempos para cá, me sinto compelida a dar satisfações ao senhor que guarda a entrada e a saída do estacionamento da rua ao lado do consultório da análise: interrompo o jogo de dominó que ele faz com um colega para pagar o valor devido, entre soluços e uma tentativa frustrada de me esconder dentro da minha própria bolsa. O senhor levanta os olhos, seu sorriso murcha e arrisco "eu estava no cinema, sabe como é, filme triste." Não que eu ache que o senhorzinho me reconheça, tampouco que ele se importe, mas a cada semana elaboro justificativas novas para aparecer ali aos prantos. De motivos óbvios a confissões íntimas, penso em contar pra ele que perdi alguém e/ou que ando com problemas de hormônios. Mas no que penso com mais frequência é em mudar de estacionamento.

“Eu sempre fiz análise atrás de resultados”, diz uma amiga que, obviamente, não chora nas sessões, visto que seu pragmatismo barra suas emoções nessas ocasiões. Deve ser a mesma lógica da mocinha que é atendida antes de mim: seca e plácida quando emerge da salinha mal iluminada da analista, jogando na minha cara sua tranquilidade nessa jornada por autoconhecimento. Ela deveria ser um exemplo para mim, mas acabou virando essa vaca que só aumenta meu sentimento de inadequação no mundo. É uma patologia, creio, e oscilo entre achar que nasci fora de época e me convencer de que estou à frente do meu tempo. Natural, então, que chore nos filmes errados, aqueles dos quais as pessoas saem alegres sugerindo um chope e acham graça quando percebem que estou chorando de me sacudir: te abraçam e gargalham, é mais ou menos o que acontece com os outros quando notam um descontrole de choro alheio.

Botafogo é também o bairro dos cinemas e onde possivelmente sofri a maior dor de cotovelo da minha vida, portanto toda vez que ando por ali estou tentando me esconder de alguém, porque quase sempre chorando (“Chorar é coisa do amor”, diz aquela canção de “Santagustin”). Isso sem contar os assaltos e velórios (“Amor coisa do coração”). Na minha cartografia pessoal essa parte do mapa carioca está borrada por excesso de água e é quase como se houvesse alguma coisa no ar: passando o Largo dos Leões já sinto os primeiros ímpetos lacrimosos. Respiro aliviada cada vez que alguém comenta que me viu “apressada pela Voluntários” ou “parada no trânsito da São Clemente” e não pôde me cumprimentar. A WikiHow, todavia, diz que “pessoas chorando em público frequentemente precisam de ajuda, e embora elas não se sintam confortáveis ou não saibam como pedir, o choro pode ser o retrato do pedido de socorro”.

Confesso que já imaginei sentar naquele banquinho do estacionamento e ter uma longa conversa com o senhorzinho do estacionamento, arruinar de vez o dominó dele, quem sabe chorar junto. Que nada, juro: só quero escapar de Botafogo em paz, rumo a qualquer outro bairro onde eu possa ser feliz.

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Julia Wähmann
ORNITORRINCO site

Autora de Manual da demissão (semifinalista dos prêmios Oceanos e Jabuti 2019) e Cravos (2016).