Uma noite no Buraco da Lacraia

Clara Meirelles
ORNITORRINCO site
Published in
3 min readJul 12, 2016
Christian Awe

Chamei um Uber e escrevi no destino: Buraco da Lacraia. Era a primeira vez que ia no famigerado buraco. O hit da night underground carioca fica em uma rua escura, que cheirava a churrasquinho na hora em que chegamos: a André Cavalcanti, na Lapa. Um sujeito de intenção simpática, que pendurava cartazes na porta e tinha um sotaque que parecia uma mistura de espanhol com islandês, nos deu as boas vindas. Pagamos 45 reais para entrar, ganhamos uma pulseirinha rosa, que nos dava bebida liberada a noite toda. E, finalmente, descemos as escadas.

É um buraco mesmo. Não tem janela, não tem saída de emergência, não tem avisos luminosos, não tem nada disso que meus hábitos suíços me fazem checar toda vez que chego a um lugar fechado. Quer dizer, havia uma saída sim, e muito bem sinalizada: para o dark room. Em menos de quinze minutos, já não havia mais onde sentar e o pequeno tablado virou espaço para os cantores de videokê. O cara do balcão servia desmedidamente — como é bom a bebida liberada — e me encharquei de Itaipava. O buraco é quente. O buraco é molhado. O canto dessa cidade é meeeeu. A cor dessa cidade sou eeeeeu.

O Cabaré On Ice é um espetáculo que acontece no Buraco da Lacraia há quatro anos, com elenco formado por Luis Lobianco, Eber Inacio, Leticia Guimarães e Sidnei Oliveira, que alterna números cômicos solos e coletivos. Acho que poderia definir o que aconteceu naquela hora e meia como um transe de gargalhada. Deu dor na bochecha de tanto rir. Era muita gente assistindo, de pé, e rindo sem parar.

Uma gringa atrás de mim fazia cara de ué a cada risada, até que não se aguentou e me perguntou o que estava acontecendo. Expliquei a ela, com a fluência do inglês etílico, de que se tratavam alguns números, e então me dei conta de como o cabaré é carioca: é preciso conhecer o Rio para rir daquele número da passista, do Cristo do Joãosinho Trinta, dos destaques de carro alegórico que se equilibram, da Elis Regina no Arrastão.

Naquele momento, foi bom me sentir carioca e moradora do Rio. Minha identidade citadina carioca, que me faz lembrar e viver todos os dias os horrores dessa administração olímpica, da violência, do maltrato das ruas do balneário, é a mesma que me permite entender e fruir esse espetáculo — que só poderia ter o Rio como berço. O Cabaré on Ice é escrachado, é bufão, é burlesco, é incorreto, sabe de si e, por tudo isso, é sensacional. Em uma época em que artista é chamado de vagabundo, descer aquelas escadas significa entrar em um espaço de crítica, resistência e liberdade. E muita cerveja. Hora de ir ao toilet.

No banheiro, vários cartazes indicavam centros de atendimento e informação sobre Aids e outras DSTs. Já meio trôpega, enxugando a mão molhada na roupa, escutei o Lobianco pegar o microfone e falar que eles eram o Cirque du Soleil brasileiro: estão há quatro anos em cartaz, e lotam sempre. Quatro anos! Lobianco seguiu: quem aqui é ativa e quem é passiva?, perguntou para a plateia. A casa parecia estar mais cheia de ativas, e o ator logo diagnosticou: o cu parece que é sagrado, né. Todo mundo concordou, ruminando um lamento. Ele não desanimou: e quem aqui dá na primeira noite? Todo mundo levantou a mão e, em seguida, olhou pro lado, para ver a resposta dos coleguinhas de noite. Unanimidade.

No dia seguinte, com a cabeça ainda latejando, fui ao pic nic de aniversário de um ano da filha de uma amiga no Parque Guinle. Segundo a mãe, o único pic nic com o tema girafas. Virada da noite anterior, me enrolei na letra do alecrim dourado e achei melhor não emendar a ciranda cirandinha. Sentei no canto. E torci para que o Buraco da Lacraia dure o tempo daquelas girafas crescerem.

--

--